O primeiro semestre de 2021 foi, para mim, e imagino que para muitos de nós, um período de muitas descobertas. No meio de todo o caos e acontecimentos malucos que viraram a rotina de cabeça para baixo, uma das descobertas que mais me ajudaram ao longo do semestre foi o quanto ouvir música clássica enquanto eu escrevo me ajuda a escrever melhor e de maneira mais fluída. Dessa descoberta veio uma playlist que eu criei para ouvir sempre que sentava para escrever. Dessa playlist, veio a paixão pela música Danse Macabre do compositor Camille Saint-Saëns. Da paixão pela música, veio a curiosidade de descobrir o que ela representa, e eu não me decepcionei.
A Danse Macabre, em português Dança da Morte ou Dança Macabra, conceito que inspirou a música, é uma alegoria muito utilizada desde a Idade Média, em pinturas, músicas, poemas, danças, literatura, escultura, no cinema e em quase todas as formas de arte imagináveis, que diz respeito a universalidade e abrangência da morte, que não tem preferidos ou prioridades. No fim, a dança da morte chega para todos.
Em todas as suas representações, podemos ver diversas pessoas e um (ou mais) esqueleto(s) em conjunto, na maioria das vezes de mãos dadas, andando, dançando ou sendo guiados pelo esqueleto para algum lugar. O esqueleto representa uma personificação da morte e está sempre levando diferentes pessoas aos seus túmulos através de uma dança. Em diversas imagens podemos ver a morte guiando diferentes figuras, como bebês, nobres, pobres, religiosos, homens ou mulheres, mostrando como não existe um filtro de idade, gênero, classe; somos todos unidos por um destino final em comum.
A alegoria da Danse Macabre foi muito popularizada após o surto da Peste Negra na Europa. Depois das milhões de mortes, as pessoas passaram a refletir sobre a finitude e fragilidade da vida e a imprevisibilidade e inevitabilidade da morte. As representações, então, eram um lembrete para as pessoas estarem sempre cientes de suas próprias vidas e aproveitá-las enquanto podiam, assim como a insignificância de bens materiais e títulos sociais.
No meu ver, essa história faz um belo paralelo com a situação atual, o que só aumenta minha já enorme paixão pela alegoria, e podemos aprender um pouco com o que foi representado na época de sua origem. Depois de um surto de proporções enormes de uma doença que o mundo estava longe de estar preparado para lidar, as pessoas foram obrigadas a aprender a lidar com o luto e o medo, as ansiedades e o pânico, assim como o choque de realidade que foi ver tantos morrendo. À época, assim como foi feito hoje, as pessoas optaram por revelar e expressar seus anseios através da arte.
A Danse Macabre tem, para mim, um significado bem diferente nos dias de hoje. Sabemos que ela mostra que a morte não tem piedade ou filtros, ela chega independentemente de idade, gênero ou classe; então, ver pessoas, especialmente jovens de classe alta, saindo para rolês, bares, festas clandestinas ou qualquer outra ocasião que os coloquem (e aqueles ao seu redor) em risco, por mais que eles se sintam invencíveis por conta de sua idade e saúde, é, mais do que qualquer outra coisa, dançar com a morte.
Mesmo que, por esse aspecto, a alegoria me traga, como uma pessoa respeitando a quarentena, sentimentos não tão agradáveis, ela está longe de ter uma conotação ruim. Muito pelo contrário: ela foi uma maneira para as pessoas se sentirem mais próximas daqueles que haviam passado e lhes ajudou a entender que não é por ser algo inevitável que tem que ser considerado algo ruim. É exatamente por ser algo inevitável que não deveria ser considerado algo ruim. E foi assim que eles passaram a aceitar essa inevitabilidade e as mortes daqueles que haviam passado na peste.
Além disso, a Danse Macabre também traz uma interpretação de tudo ser finito, então nada, senão a própria vida, é de grande importância. A vida de um servo ou um plebeu tinha o mesmo destino e o mesmo significado que a de um nobre ou de alguém de alto clero. Olhando por essa lente, nenhuma vida é superior ou inferior a outra, somos todos empilhados de carnes e ossos passando um tempo no mundo sensorial e vamos todos para o mesmo lugar no final: nossos respectivos túmulos.
O conceito da dança macabra é atemporal, por isso ela segue sendo representada frequentemente na cultura até hoje. Um dos primeiros contatos que tive com uma referência, mesmo que bem indireta, a ela, sem nem mesmo perceber, foi em uma música chamada Drunk Drivers/Killer Whales, de uma das minhas bandas preferidas. No verso, o cantor diz “You share the same fate as the people you hate” (Você compartilha o mesmo destino das pessoas que você odeia), quando se referia ao fato de que essa reflexão traz uma sensação de vazio existencial nele.
Outra referência conhecida (e que faz um paralelo bizarro com a situação atual do mundo) é o uso da alegoria pelo escritor Edgar Allan Poe, autor de contos fictícios de terror do século XIX, no seu texto “A Máscara da Morte Rubra”. Nele, vivendo isolado da pandemia da “Morte Rubra”, que matava toda a sua nação, um príncipe chama um milhar de seus amigos para viverem com ele, em uma quarentena em conjunto em seu palácio. Depois de alguns meses, tal príncipe decide dar um baile de máscaras, onde a morte aparece com uma máscara vermelha e acaba com o luxo que eles viviam e foi, um a um, levando todos os convidados para seus destinos finais. Eu nunca tinha pensado que fosse olhar para um conto do Edgar Allan Poe e ver a vida real, mas cá estamos. O mal do mundo sempre foi muito previsível.
Por fim, para fechar esse texto macabro da melhor maneira possível, uma representação, provavelmente a mais famosa entre essas, é em uma das cenas finais de um dos melhores filmes da história, O Sétimo Selo, de 1957, do diretor Ingmar Bergman. Nela, (alerta de spoiler, mas o filme é de 1957 então não imagino que um spoiler seja o fim do mundo) a morte vence a batalha que ela estava travando com o protagonista e finalmente consegue buscar ele e seus companheiros de viagem e levá-los, em cenas que lembram muito uma dança, para o fim de suas vidas. A temática mais presente ao longo do filme todo é a morte e o protagonista tentando evitá-la, então não havia final mais perfeito. É um dos melhores filmes que eu já vi em minha vida e eu suplico a todos que tenham um apreço pela sétima arte a vê-lo.
A dança da morte veio na Idade Média para nos ensinar a lidar com os problemas da época, mas ela nunca deixou de ser presente e uma resposta para as coisas que vivemos desde então. Hoje, mais do que nunca, depois do ano que foi 2020 e o ano que está sendo 2021, acho que devíamos olhar para o que a arte sempre nos ensinou e voltar a ouvir o que a Danse Macabre veio para nos dizer: carpe diem.
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