Lançado em 1998, Mulan é um dos filmes que marcaram o renascimento da Disney para as telonas com desenhos animados. A protagonista, homônima ao título do filme, precisa se passar por homem para entrar na guerra contra os hunos e defender a sua dinastia. Os líderes, os soldados, os aldeões e seus familiares não poderiam saber que uma mulher estava nos campos de treinamento, nos campos de batalha e realizando outras atividades reconhecidas como tarefas dos homens.

Quando pensamos em mulheres guerreiras na história, vemos, de cara, a imagem de Joana d’Arc à nossa cabeça. Entretanto, os exemplos são praticamente infinitos. Pensando na história de Mulan, uma personagem da história que teve influência em toda a cultura popular ocidental, provavelmente até no filme da Disney, é a lendária pirata irlandesa: Anne Bonny.

Enquanto Mulan se passa nos anos 400 ou 500 d.C., Anne nasceu em 1702, sendo a filha bastarda de um advogado irlandês com a empregada de sua casa. Sendo mal visto por ser um adúltero, desvio grave para a época, sua filha consequentemente era mal vista e tratada com ódio pelas pessoas.

Apesar do mundo, aparentemente, não sorrir para Anne, seu pai se importava mais com o seu bem estar do que era de se imaginar à época. Para tentar fazer com que sofresse menos, ele a vestia como menino desde pequena, para que pensassem tanto que não fosse sua filha bastarda, quanto para minimizar as dores que uma mulher poderia ter nas ruas britânicas. Não funcionou muito, tanto que, aos 13 anos, sua filha bastarda foi provocada por um homem e ela o espancou quase até a sua morte, precisando ser contida por mais de quatro pessoas.

Vendo que a estratégia era ruim e que, por ter cometido adultério, seus negócios iam de mal a pior, eles se mudam para a Carolina do Norte, província britânica no que viria a ser os Estados Unidos, e enriquecem como mercadores. Como era normal à época, seu pai arranjou um casamento para Anne, e, bom… Lendo até aqui, já é de se imaginar que ela não acharia uma boa ideia se casar com alguém que ela sequer conhece ou teve a opção de escolha. Para não se unir com o rico arranjado por seu pai, casou-se com um marinheiro pobre: James Bonny, com quem Anne fugiu para Nassau (conhecida como República dos Piratas).

Um ponto importante a se notar, até aqui, é em como alguns aspectos dessa história são familiares. Recapitulemos: o pai, que engravidou a empregada, protegia sua filha bastarda e a vestia de homem porque, caso descobrissem que ela era mulher, seria ainda mais mal vista. A filha demonstrou personalidade forte ainda enquanto criança, espancando um homem e continuou, enquanto jovem, não aceitando um casamento forjado e escolhendo seu próprio cônjuge; alguém que, obviamente, seu pai não aceitou. Por isso, fugiu com seu novo esposo para um recanto de piratas. A quantidade de histórias populares, desenhos e contos que esbarram em alguns desses acontecimentos é enorme, chegando a parecer, inclusive, que a história de Anne é um próprio conto forjado em cima das histórias que ela influenciou.

Resumindo seus anos de pirata, Anne logo deixou James, porque seu esposo conseguiu um emprego no qual ela passou a abominar: informante do governo. É de se esperar que alguém como ela, cuja força é tão grande quanto a personalidade, não simpatizaria com a ideia de ser X9 daqueles que, assim como ela, eram os renegados. Anne fugiu com Calico Jack, um pirata famoso até os dias de hoje, formando com ele uma das mais temidas frotas da época.

Ainda assim, Anne se vestia como homem, porque a tradição pirata dizia que mulher a bordo trazia azar. Além de acreditarem que traziam fome e escorbuto, os capitães preferiam proibir mulheres porque seus subordinados ficariam distraídos se elas estivessem a bordo. Fingindo ser homem, Anne Bonny, sem largar o sobrenome do ex-marido, fez sua história.

Os últimos relatos de Anne são do momento de seu aprisionamento. À noite, o navio William, do capitão Jack, foi abordado por embarcações do governo; totalmente embriagados, os tripulantes e o próprio capitão não conseguiram reagir, sendo Anne e Mary Read as duas únicas pessoas a lutarem. Enfurecida com a situação, Anne atirou em três dos seus próprios piratas para induzir os outros a lutarem – sem sucesso.

Mary Read foi outra pirata, também lendária, que se vestia como homem. Anne descobriu sua verdadeira identidade quando se apaixonou por “ele”, até então. Com medo de ser descoberta tardiamente, Mary revelou para o homem que havia se apaixonado por “ele” que ela era mulher. No fim, as duas eram mulheres e, segundo os principais livros e artigos sobre as duas, se tornaram grandes amigas, não havendo comprovação ou menção de romance, mas uma sendo a única pessoa em que a outra confiava.

Escultura feita em homenagem à Anne e Mary, na Irlanda.

Logo antes de ser enforcado, Calico Jack, esposo de Anne, ouve suas últimas palavras: “se você tivesse lutado como um homem, não precisaria ser enforcado como um cão.” Essa frase de Anne é famosa até os dias de hoje. No momento em que ficou presa, Anne alegou estar grávida, não podendo ser enforcada por isso. E ao mesmo tempo em que terminam por aí os registros sobre sua vida, há comprovação histórica de que ela não foi enforcada ou mantida presa. As opções aceitas pelos pesquisadores são duas: na primeira, sua fiança foi paga pelo seu pai, que ouviu sobre Anne com a repercussão do caso e a levou de volta para a Carolina do Norte; na segunda, Anne e Mary conseguiram, de algum modo, fugir da prisão e continuaram a vida de piratas.

Anne, como mencionado no primeiro parágrafo, foi crucial para o desenvolvimento da cultura popular. Além de sua influência sobre Mulan e diversas histórias atuais, ela conta com aparições e referências diretas em todos os tipos de obras. Na foto, a personagem Jewelry Bonney é uma homenagem a Anne feita pelo anime One Piece, talvez um dos principais responsáveis pela popularização das histórias de piratas na geração atual. Destacamos, abaixo, outras peças culturais em que Anne deixa a sua marca:

Livro: Seizure, onde os protagonistas buscam o tesouro perdido de Anne Bonny (que, na vida real, não existe).

Filme: Anne of the Indies, romance estadunidense sobre a vida da lendária pirata.

Filme: Die Abrafaxe Unter Schwarzer Flagge, filme alemão sobre os piratas que ficaram abaixo da bandeira negra, símbolo do Calico Jack.

Série: Black Sails, na qual a história de vários piratas é contada – incluindo Anne Bonny.

Documentário: The Lost Pirate Kingdom, seguindo o mesmo rumo de Black Sails mas em tom documental.

Jogo: Assassin’s Creed Black Flag, fazendo sua aparição de gala enquanto personagem.

Música: Anne Bonny, homenagem direta feita pela banda brasileira Jimmy & Rats.

“O enforcamento não é um grande problema. Se não fosse por ele, todo sujeito covarde se tornaria pirata e o mar seria tão desajustado que os homens de coragem morreriam de fome.” — Anne Bonny

Contando algumas histórias nas minhas próprias contradições.