Não há nada mais que ordinário em minha história, nada mais que um dia que levanto-me de minha cama, tomo consciência de onde estou, tendo que ouvir o estridente som do trem chegando à estação perto da minha casa, percebo que hoje é mais um dia de trabalho, reflito enquanto troco de roupa se já da tenra vida de uma jovem como eu deveria realmente se submeter a essa realidade diabólica. Vou amarrar meus sapatos e percebo que estão com emaranhados de nós assim como minha mente, eu havia me esquecido como amarrava eles, meus sentimentos estavam emaranhados assim como esses cadarços que chegavam ao meu âmago. Antes de sair de casa, no relance do meu olhar, eu vejo aquele trenzinho que meu pai havia me dado quando criança, isso me faz lembrar como minha vida nem sempre foi sofrimento, e penso na bobagem em que estou vivendo.

Mais um dia acordo com o som cacofônico de trens, todos dias tendo que lidar com eles, olho para minha janela e vejo trilhos que talvez não houvesse notado antes, ou simplesmente apareceram do dia para a noite, percebi que os sons de trens não paravam, aquele trenzinho em minha casa começava a trilhar seu caminho de forma aleatória dentro de minha casa. Eu fico desesperada sem saber o que fazer, a mim só apareciam mais imagens infindáveis de trens indo em caminhos convolutos, era provável que eles ultrapassariam o topo da minha cabeça. Eu fujo para a varanda esperando que esse barulho cesse e vejo que minha cidade já não é a mesma que eu conhecia: há trilhos de trens que agora separam em pedaços de terra os lugares que eu conhecia. Eu começo a sentir minha pele pinicar, como se tivessem espinhos cutucando de dentro para fora; isso me traz o impulso de coçar ela, eu queria poder tirar minha epiderme para que essa agonia acabasse, é como se essa pele não pertencesse ao meu corpo.

Então me recorreu à mente o meu ponto de fuga para essa confusão, eu esperava que isso resolvesse meus problemas e rezava que o lugar não houvesse sido destruído pelos trilhos na cidade. Meu único refúgio seria o campo de crisântemos. Eu levo comigo minha cesta para colher meu buquê, saio correndo por um caminho que desconheço e consigo achar o campo; por minha sorte ele estava lindo como sempre. Aquele momento era um momento de paz em que eu poderia pagar pelos meus pecados, eu sempre as colhia com minhas mãos nuas, eu acreditava que esse ato faria eu pagar por tudo que fiz, o sangrar de minhas mãos colhendo os caules espinhosos dessas belas flores me traria o perdão e talvez até a misericórdia, preparar para a face morta do meu ser. Em um ato de desespero eu pego uma pétala junto ao sangue em minhas mãos e a engulo esperando que eu tenha a resposta que eu procurava, eu sentia sua textura escarlate e sentia o gosto de ferro com pitadas de ferrugem que me proporcionara e o que veio em minha cabeça era para onde o trilho em minha casa levaria.

 Voltei imediatamente para minha casa, lá me esperava meu equino, com sua pelagem marrom, cascos firmes e um belo focinho; ele era como uma figura familiar para mim, que me dava esperanças, me acolhia, e eu poderia dar o carinho que ele merecia. Ele acompanhar-me-ia nesse caminho do trilho, talvez também ele poderia finalmente me levar à Lua, era o cavalo dos meus sonhos que eu poderia acariciar. Caminhávamos pelos trilhos, a gente sabia que alguém me esperava e que a algum lugar levava; eu olhava para a senda de maneira cabisbaixa, eu notava os trilhos enferrujados e via as imagens da minha vida, eu me via nessas figuras de ferrugem, e minha história estava encravada nelas. Minha introspecção me trazia falsas memórias do que eu seria se tivesse ido pelo caminho certo, evitando de me encontrar nessa situação miserável.

            Depois de muito tempo andando, eu tive o devaneio de perceber quem me esperava, aquele trilho só levaria a mim mesma; havia horas que eu estava andando, em espera do lugar que chegaria, mas eu só via a minha imagem. E então, algo me surpreende, aquele que estava me esperando era minha própria sombra, que sussurrava em meu ouvido, me julgando, me negando, ela me amaldiçoara com sua própria existência, chamava de impostora, a única forma de mostrar que eu era real, era matando-a, uma pura amálgama da repulsa.

E então, vi que penas eu estava ali andando esse tempo todo, sozinha, a única solução era continuar andando, em espera de que algo apareça e me salve desse lugar. Mesmo com meus pés cansados, eu não encontrava uma solução, só em ato de desespero, eu comecei a correr e olhar para os lados, assim, tive o vislumbre do que seria essa salvação. Nesse caminho circular, eu apenas tinha a opção de continuar andando, que independente do que ocorresse, de o que me aparecesse, e aonde eu chegaria, se eu permanecesse andando, eu ao menos em algum lugar poderia chegar. E então foi capaz de encontrar uma rota fora da mata que rodeava os trilhos, eu sabia que finalmente seria o único caminho que apenas eu poderia andar, tudo que aconteceu era minha culpa, eu olhava tanto para onde eu pisava, que não via por onde eu poderia andar, eu não via o mundo a minha volta.

Eu conseguia sentir o tato do meu pé com a terra, pude sentir felicidade em poder vagar novamente. Em tempos correndo, fui capaz de ver a transição dessa saída para uma praia, meus pés tateavam o reconfortante calor da areia, eu me sentia como no abraço de uma mãe, aqueles pequenos grãos se moldavam à minha ergonomia, como se aquele lugar fosse feito para mim, não era algo que se prendia a mim, mas que me acolhia, estava na minha frente o Sol que me guiaria.

Agora, nesse momento, fui capaz desse ovo que me aprisionava, pude concretizar a minha própria revolução, chocar o mundo que me rodeava e encontrar minha verdadeira vida. Minha vida pode finalmente começar em sua essência, eu era como um filhote de tartaruga que acaba de conhecer um mundo que não é seu, corre para a água do mar, ser o momento mais crucial da sua vida, que vai determinar seu crescimento e sobrevivência. Eu sou aquela que permeia o mar e os céus, que controla as ondas da minha vida, controlar os ventos para onde vou e irei, eu era capaz de escolher o destino que me pertencia, o mar agora era minha galáxia, as estrelas me guiavam, e as baleias me falavam sobre a verdade, os segredos, o vazio e a completude do universo.

 Meu ser pôde encontrar a paz, meu sofrimento obteve seu sentido, consegui finalmente encontrar minha própria voz, pude gritar ao mundo que estava viva, pude encontrar a plenitude nesse mundo de ódio de uma vez por todas, ser livre como os pássaros a voarem no céu, agora tudo está claro, como eu amo poder estar com você.