Todo mundo já viu alguma tirinha do Calvin e Haroldo em provas do ensino fundamental. As minhas vinham sempre com o enunciado “Qual é o humor da tirinha?” e todos os alunos, já revoltados aos 11 anos, comentavam nos corredores que a vontade era responder “a tirinha não tem graça”. Mas eu estou aqui na tentativa de que todos dêem uma nova chance a essa HQ atemporal, arruinada para muitos pelo contexto avaliativo.
A primeira tirinha foi publicada no jornal em 1985, e a última edição foi apenas 10 anos depois, dia 31 de dezembro de 1995, ou seja, tempo suficiente para desenvolver esse legado. O autor, Bill Watterson, conseguiu que as tirinhas publicadas aos domingos fossem grandes e coloridas, quebrando o comum de tirinhas de jornal e dando espaço para a sua imaginação trabalhar.
Calvin é um menino com muita energia e muita imaginação. Haroldo é seu tigre, melhor amigo e fiel companheiro, que todas as outras pessoas enxergam como um bichinho de pelúcia. Essas pessoas incluem seus pais, uma menina com quem implica na escola, um valentão também da sua escola, sua professora, seu diretor e sua babá, todos com personalidades relativamente amargas, enxergando Calvin muitas vezes como irritante.
O tema central da tirinha é imaginação. Calvin não vê sentido em ir para a escola, se sente preso, confinado a um local no qual é visto como burro, como um incômodo aos outros alunos, como desrespeitoso. Mas, na verdade, Calvin é um menino genial, com um poder imaginativo absurdo, com a capacidade de criar histórias complexas. É um menino que representa a arte de ser criança e imaginar que tipo de adulto ele seria caso seu entorno valorizasse e cultivasse essas características é encantador.
Recomendo ler as exatas 3160 Calvin e Haroldo em ordem. Não podemos usá-las como o trabalho de um chargista, separando cada uma como se fosse uma história completa por si. São como episódios de uma série ou capítulos de um livro. Arrancá-las de seu contexto e pedir uma interpretação completa é absurdo e é praticamente impossível simpatizar com Calvin e Haroldo sem ter tempo para conhecê-los. Não há o que eu possa falar aqui que seja tão convincente do humor das tirinhas do que lê-las no ritmo perfeito do autor.
Watterson estudou política e filosofia, e muitas discussões estão sutilmente inseridas em Calvin e Haroldo. Quando adulto, é mais fácil perceber esse aspecto. O autor coloca que crianças se divertem com Calvin pelo humor físico e pelo absurdo de suas aventuras, enquanto os adultos se divertem por essas sutilezas inseridas de forma leve. Não é papel das crianças saber identificar sobre o que é a tirinha, e sim lê-las como queiram, e se divertirem com a simplicidade absurda de um menino e seu tigre. E nós que estamos mais velhos conseguimos rir dos dois, e sentir saudades de ser mais como Calvin e Haroldo. Talvez até reunir forças para encontrar uma partezinha dessa pessoa em nós.
Por esses motivos, não era engraçado ler uma única tirinha de Calvin e Haroldo, muito menos aos 11 anos e muito, muito menos na escola. A HQ é uma experiência imersiva e filosófica sobre imaginação e sobre ser criança. É uma violação do próprio espírito da tirinha pedir para que crianças a interpretem, para que achem graça, por nota no boletim.
Para deixar mais clara a preocupação do autor com a criação de um espírito para o mundo que criou, Watterson tomou uma decisão a respeito do licenciamento de seus personagens. Calvin e Haroldo existem apenas nas tirinhas oficiais. A pureza, a graça e a energia infantil se perderiam se eles se tornassem ícones de merchandising e produção em massa. Esse nível de imersão torna a leitura das tirinhas em uma experiência: mergulhar no mundo daquele menino, que só existe ali, para ele. Como se compartilhássemos um segredo.
Você precisa fazer login para comentar.