Um filme cujo principal personagem é o Tempo e que começa com um imenso céu, manifestação direta da transcendência, do poder, da perenidade, do soberano e da eternidade. Quando a câmera caminha para baixo, revela que este céu está sendo observado por um menino. A partir daí o que vemos é a história de Mason (sensivelmente interpretado por Ellar Coltrane), um garoto americano, dos 6 aos 18 anos, na sua estrada-tempo, com direito a pequenas paradas onde conheceremos novos personagens e situações ao longo de pouco mais de uma década de sua vida.

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Em Boyhood (no Brasil o filme ganhou o desnecessário subtítulo “Da infância à Juventude”) de Richard Linklater temos uma construção muito parecida com o que aconteceu na sua trilogia Antes do Amanhecer (1995), Antes do Por do Sol (2004) e Antes da Meia Noite (2013): foram doze anos acompanhando uma mesma equipe e um mesmo elenco, que por sua vez acabou transformado junto com seus personagens, causando a impressão de algo que vai além de uma representação. Ethan Hawke, ator que participou da referida trilogia, retorna como o pai do menino Mason, que apesar de todos os pequenos traumas que enfrenta, se torna um jovem adulto com uma personalidade carismática repleta de curiosidade pelo mundo (o personagem, a meu ver, representa a visão do artista-poeta, analogicamente metonimizada na paixão do personagem pela fotografia). Ver o personagem crescer e evoluir como ser humano é o que mais emociona neste belo filme, pois nos leva, como espectadores, a refletir sobre nossa própria estrada-vida: é um filme que compreende que somos o resultado de uma coleção de instantes mais ou menos memoráveis e que, portanto, somos seres fluidos por natureza (como um céu e suas nuvens passageiras).

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Outro elemento encantador: Boyhood reconstrói habilmente toda uma década a partir de referências da Cultura Pop, indiciadas por sua cativante trilha sonora que apresenta um mix de Coldplay, Bob Dylan e Arcade Fire, além de trechos que mostram Dragon Ball Z, Lady Gaga, Britney Spears, Harry Potter e outras pontuais contextualizações dos anos em que cada episódio do filme se desenvolve. São signos indiciais que o cineasta apresenta para guiar o espectador, tornando nossa cumplicidade com os personagens ainda maior e mais emocionante. Estamos na mesma estrada do personagem, somos seus acompanhantes e trilhamos uma mesma travessia que vai de um tempo perdido para um tempo redescoberto.

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Gilles Deleuze, brilhantemente, aponta a força da relação Tempo e Arte: “Tempo que se perde, tempo perdido, mas também tempo que se redescobre e tempo redescoberto. A cada espécie de signo corresponde, sem dúvida, uma linha de tempo privilegiada. Os signos mundanos implicam principalmente um tempo que se perde; os signos do amor envolvem particularmente o tempo perdido. Os signos sensíveis muitas vezes nos fazem redescobrir o tempo, restituindo-o no meio do tempo perdido. Finalmente os signos da arte nos trazem um tempo redescoberto, tempo original absoluto que compreende todos os outros.”

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É para guardar na memória as últimas cenas do filme, onde o teor poético das imagens atinge o ápice. Mason, o menino, agora é Mason “adulto”, fotografando signos marcados pelo tempo: um lampião antigo, um hidrante enferrujado, semáforos que não funcionam. Pelo retrovisor do carro mira o tempo que ficou para traz e, assim como nós espectadores, mira também a estrada que está pela frente… o futuro que nos espera, e como um poema, enigmático em sua beleza, o menino-adulto diz: “Parece que sempre é o agora”. E entre o sempre e o agora, a “vaguidão branca do intervalo” de Deleuze.

Passado, Presente e Futuro fundidos em um único tempo: “Entre um instante e outro, entre o passado e o futuro, a vaguidão branca do intervalo. Vazio como a distância de um minuto a outro no círculo do relógio. O fundo dos acontecimentos erguendo-se calado e morto, um pouco da eternidade. Apenas um segundo quieto talvez separando um trecho da vida seguinte. Nem um segundo, não pôde contá-lo em tempo, porém longo como uma linha reta infinita. Profundo, vindo de longe, – um pássaro negro, um ponto crescendo do horizonte, aproximando-se da consciência como uma bola arremessada do fim para o princípio. E explodindo diante dos olhos perplexos em essência de silêncio. Deixando depois de si o intervalo perfeito como um único som vibrando no ar. Renascer depois, guardar a memória estranha do intervalo, sem saber como misturá-lo à vida. Carregar para sempre o pequeno ponto vazio – deslumbrado e virgem, demasiado fugaz para se deixar desvendar.”

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Boyhood nos faz perceber que tropeçamos por entre flashes vistos/vividos… pedaços de lembranças que enfatizam o passado impossível de ser recuperado e que pede pelo desejo da nostalgia, convite a um retorno à “vaguidão branca” guardada na memória. Algo é retido do passado, porém não o passado imediato da retenção, mas o passado reflexivo da representação, a particularidade refletida e reproduzida, com tal postura, como, mais uma vez, nos ensina Deleuze: “o próprio futuro deixa de ser o futuro imediato da antecipação para tornar-se o futuro reflexivo da previsão, a generalidade refletida do entendimento…”.

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João Carlos Gonçalves (Joca)

Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.

 

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