Heróis

— Lucques, esse não era o nome no…?

— Aham. —  O garoto da cicatriz respondeu antes mesmo que ela terminasse a frase. Ayla e Alex murmuram vários “não” com as mãos no rosto.

Eles conhecem Deméter ou tinha acabado de colocá-la em perigo?! Ela não consegue se defender do jeito que tá. Onde tem uma mamona por aqui?

— Eu falei que ela trabalhava pro Z! — Nicholas andava de um lado para o outro, só deixando os outros, incluindo Liliana, mais nervosos ainda.

QUEM É ESSE Z?

— O que eu não consigo entender é o porquê de você não ter ligado para uma ambulância até agora. — disse o menino da máscara.

— Se eu tivesse bateria, eu teria feito isso. E …

— E como vão trazer uma ambulância no meio do mato, Arnaldo? — As palavras da garota eram tão afiadas quanto seus olhos.

Passos acelerados, como se alguém corresse até eles, ficavam cada vez mais altos e não foi paranoia da mente de Liliana, pois Nicholas também percebeu e arregalou os olhos.

— VAMO EMBORA, CAMBADA. —  ele apontou para o garoto musculoso — SAKATA, AGARRA ELA E VAMO EMBORA!

— Como assim “Sakata agarra ela”? — no meio da frase ela já estava sendo carregada como um saco de batatas por cima do ombro de alguém enquanto todos corriam de algo. Ou melhor, alguém.

Com o privilégio de observar a visão traseira, Liliana estava cara-a-cara com a ameaça. Bem, se ela estivesse aparente. 

Algo balançava as árvores ao redor de onde estavam, os perseguia quase tão rápido quanto corriam. E se aproximava mais e mais. A garota tenta avisar, mas a faca atinge o estômago de Lucques antes que as palavras dela sejam sequer processadas. Um grito de dor foge da garganta do garoto, quase como se estivesse com cólica, mas ele não parou de correr.

Quando ela foi olhar para ver o que tinha acontecido, soltou um grito três vezes mais alto que o de Lucques. Sangue, sangue, SANGUE! Ela se esperneava no ombro do gigantão, mas este nem parecia sentir seu esforço.

Mais facas voaram e, por um instante, ela se sentiu feliz por não estar correndo.

Mas esse sentimento foi logo dissolvido em pânico ao lembrar que ela era o alvo mais fácil de todos — inofensiva e vulnerável. Queria acordar desse pesadelo, acordar e ver que estava no seu quarto em São Paulo, ou até com Deméter, em perfeito estado de saúde.

O grupo revidava fogo com fogo; Alex lançava feixes de luz na direção de onde veio a faca, Sakata, de vez em quando, jogava alguma coisa pesada, Lucques parecia se teleportar às vezes e Nicholas tinha uma machadinha, que usava para abrir caminho.

O estômago de Liliana estava começando a doer com as batidas no ombro do Sakata correndo. O líquido vermelho escorrendo nas mãos de Lucques e o balançar da corrida quase fizeram seu café da manhã manchar as roupas do garoto.

A menina cética, Nicholas e Lucques gritavam entre si. Perguntavam se alguém via o que os estava atacando, o porquê de estarem logo agora, mas não quando ficaram parados por minutos. Ayla, que lançava flechas com sua mente, segurou a que estava em sua mão e começou a correr atrás de Sakata, ficando cara-a-cara com Liliana. Uma faca voou diretamente no seu braço, fazendo-a soltar um grito, fazendo Nicholas desacelerar para ficar do lado dela. Seus olhos observavam a alien com preocupação, mas ela olhava no fundo das orbes da garota sendo carregada, com algo próximo de…

Satisfação?

— Me deixa entrar na sua mente.

— Como é que é?

— Me deixa entrar na sua mente pra ver como a Deméter é!

— Ayla, o que voc… — Nicholas começou

— A pessoa que está nos atacando está atrás da Deméter — ela arranca a faca e entrega para o garoto. — Eu, Lucques e Sarah encontramos alguém no templo e essa vaca nos atacou com faquinhas iguais a essa. — Por um instante, sua boca se fechou e seu olhar se direcionou para o loiro, quem Liliana podia jurar que viu corar. Foi numa questão de segundos: Nicholas assentiu com a cabeça e Ayla pulou nas costas dele.

— Lilian, confia nela! Confia em mim, cara! — ele gritou. —  Ela só precisa ver uma coisinha.

— Não! Você não vai invadir a minha mente! — gritou mais alto — VOCÊS LITERALMENTE ESTÃO ME SEQUESTRANDO!

— EI, EI, EI! PRIMEIRO QUE VOC… — Nicholas gritou mais alto ainda, com indignação e raiva, mas Ayla tapou sua boca antes que continuasse e gesticulou com os lábios.

“Eu preciso ver como a Deméter é. Por favor. A gente te ajuda e te deixa ir, mas deixe-me vê-la.”

Liliana assentiu e fechou os olhos, se preparando para a dor, mas esta não veio. A visita de Ayla foi como o abraço de um parente. Tentou se comunicar com ela, dizer que era só para ver como ela era e nada mais, sem esperar alguma resposta, no entanto, esta veio. Claro. E então Liliana estava sozinha consigo mesma de novo.

A garota abriu os olhos e viu que Ayla também estava de olhos fechados, mas desta vez era Nicholas quem parecia ser telepaticamente visitado. A alien abre os olhos e desce das costas do loiro, mas antes deixa um selar na nuca deste, que cora muito mais. Por um instante, os dois ficam turvos, mas logo passa.

Nicholas se recompõe e, do próprio ar, surge uma pessoa, com cabelos ruivos vívidos e trajes verdes que Liliana recordava muito bem.

Deméter. Deméter estava correndo na direção contrária do grupo.

Quem quer que estivesse os atacando, tornou a recém-criada Deméter seu novo alvo. Liliana até poderia ter gritado para que salvassem-na, mas lembrou que fazia dias desde que a ruiva andou sem a ajuda dela.

O grupo correu por mais algumas dezenas de metros antes de parar para recuperar o fôlego, mas Sakata não a largou. Alex correu em direção ao colega de bucho aberto e uma luz muito forte emanou de suas mãos, que envolveram a ferida. Daniel pegou sua caneta e, antes que pudesse fazer qualquer coisa com ela, uma parede de dois metros de fumaça se formou subitamente e de lá saiu uma mulher. Ainda translúcida na névoa, deveria estar perto da casa dos quarenta, pela voz, mas seu corpo parece ter congelado dez anos antes. Com um rosto fino, era delimitado pelos cabelos lisos tingidos de rosa, que estavam jogados para um lado revelando uma parte raspada de sua cabeça, seu olhar afiado como o de uma raposa combinavam com sua aura. Seus trajes eram semelhantes ao dos heróis que Liliana via na televisão.

— O que aconteceu? — o volume alto era mais por conta da preocupação do que qualquer outra coisa. Essa deveria ser a Julia que falaram mais cedo, ou a Larissa.

— Ela fugiu, a gente tava voltando pra casa… — Ayla respondia calmamente, diferente de Nicholas que andava de um lado para o outro falando palavras incompreensíveis, entre elas “Ayla” e “facada”, que já foi o suficiente para a mulher fazer os primeiros socorros no braço dela.

— Tá, mas quem é essa menina? — ela gesticula com a cabeça na direção de Liliana. — O que vocês tão fazendo?

— É uma civil, ela tava no meio da floresta. E a gente foi atacado do nada por um monte de facas voadoras, o Lucques teve o bucho aberto e a Ayla levou uma no braço, mas eu dei aquele drible maroto e mandei ela na outra direção. Ela tava atrás de uma tal de Deméter e como a Ayla — a mulher disse algo que foi atropelado por Nicholas, ainda frenético. — É uma deusa, né, me contaram sobre isso…

— Mas vocês não tinham visto algo sobre ela… mais cedo? — o tom de voz da mulher ficava mais baixo conforme a frase ia. Alguns dos jovens assentiram e Daniel disse algo sobre “Templo para Deméter” — E essa menina sabe onde ela tá?

— Você sabe? — Nicholas e Alex viraram-se e disseram em sintonia.

E de repente Liliana se tornou o centro das atenções. E como ela ODIAVA ser o centro das atenções. Tinha crises de ansiedade por conta disso desde os 4 anos. Com o tempo, sua mãe percebeu e parou de dar festas e Liliana passou a celebrar seu aniversário com um bolinho e uma vela chamativa.

— Me bota no chão? — o garoto reclamou um pouco e colocou-a de pé na frente de todos. — E por que eu deveria contar para vocês? Vocês… tentaram matar uma pessoa, se vocês são realmente heróis, não deveriam mat… 

— Acho que eles fizeram alguma coisa de errado, eles estão bêbados, então primeiramente, desculpe pelo inconveniente. — Ela termina de enfaixar a barriga de Lucques e sua atenção está completamente voltada para Liliana. — Meu nome é Larissa, eu sou professora do Colégio André Andrari. Eles são alunos do segundo ano, estão em período de aprendizagem, mas viemos aqui para tirar umas férias. — Ahh, que sonho… Liliana, em outra mão, estava perdendo metros de lição de casa… — Só que as férias que a gente achou que seriam férias não são muito bem férias. — Ah. — Nós achamos um templo aqui próximo que falava de uma tal de Deméter e que um culto queria matar ela. — A desconfiguração do cérebro da menina deve ter ficado muito óbvia. — É, eu sei que é muita informação de uma vez só, mas é melhor ser sincera de uma vez. E, se você sabe a localização dela, talvez ela esteja correndo perigo. Eles são “super-heróis”, — ela gesticula as aspas — a gente pode tentar fazer alguma coisa para ajudar.

Realmente era muita informação para se processar. Essa sequência de afirmações e fatos geraram mais perguntas do que respostas. Deméter era A Deméter? Da mitologia? O que ela queria comigo então? Por que o culto tá atrás dela? Esse culto seria o que está deixando ela doente? POR QUE ELA TEM UM TEMPLO? 

Eles disseram que poderiam ajudar, que eram heróis. Liliana quis ser uma heroína, por muito tempo, ainda quer, mas sua mãe cortou suas asas — colocou-a num colégio convencional e disse que seria uma advogada de renome. 

Ainda digeria as informações quando seus passos guiavam o grupo para um lugar que nem ela mesmo tinha certeza de onde era, apenas deixou seu coração repleto de preocupação levá-la.

(corta cap)

Já faziam algumas horas desde que começaram a andar e nenhum deles dirigiu uma palavra à Liliana, esta, por outro lado, prestava atenção em cada diálogo, mas um em específico ficou gravado.

Assim, Lari, eu tenho uma boa e uma má notícia,  Nicholas disse e alguém, provavelmente Larissa, expirou a boa é que eu coloquei a mulher em uma ilusão então ela tá correndo atrás de uma Deméter que não existe. A má… é que eu não sei quanto tempo vai levar até que ela perceba que é uma ilusão.

Vocês são muito foda, hein, velho… foi a única coisa que ela respondeu. Se foi um elogio ou não, Liliana acredita que nem a própria professora saiba. Talvez uma mistura?

Seus pés imploravam por misericórdia quando viram a casa entre alguns troncos e suspiraram aliviados quando viram a cabaninha no meio da clareira. Era simples, com toras de madeira enfeitando a fachada como se fosse um chalé típico de montanhas nevadas. Apenas uma das enormes janelas estava acesa com uma luz tremulante, onde a única pessoa da casa estava.

Contornaram o lago e, quando abriu a porta, Liliana lembrou que seu cesto havia ficado no meio daquele matagal. Deu uma batida forte com a cabeça no batente e virou para o grupo, como se sua testa não fosse ficar avermelhada em minutos.

— Vocês, por algum acaso, têm aquele remédio que falaram aí com vocês? Porque, se não, a gente vai ter que voltar tudo — deu uma risada fraca e envergonhada. Alex, a loira reluzente, deu um passo para frente.

— Eu posso tentar resolver — a confiança em sua fala contrastava com a insegurança de suas palavras, mas Liliana sorriu e agradeceu.

O grupo ficou parado na porta da casa que a garota tentou ao máximo manter em ordem. Eles analisavam o ambiente, como se procurassem por algo. Será que realmente são heróis ou só vítimas de algo maior? Uma voz familiar e reconfortante como o som da garoa chamou pela menina. 

— Eu cheguei — não precisava gritar, dado o tamanho limitado da casa. 

— Trouxe as coisas? — uma tosse se seguiu. Liliana hesitou, olhando para o grupo.

— Mais ou menos —  eles tamparam e abafaram os risos. —  Não desce, eu já tô subindo aí. 

Alex se aproximou e sussurrou no ouvido de Liliana que era melhor se só ela subisse, para não assustá-la. 

Larissa abriu os braços no batente, criando uma barreira entre o interior e o exterior da casa, e se virou para o grupo.

— Gente, não entra na casa. Aparentemente a mulher tá sozinha em casa. Vamos respeitar o espaço das pessoas, ok, —  seu olhar fuzilou um alvo — Nicholas? — o garoto senta no degrau de cabeça baixa, resmungando xingamentos que Liliana nunca teria coragem de repeti-los.

As duas garotas sobem as escadas para o sótão adaptado em quarto. A primeira visão é de um monte de cobertores, quilos e quilos, jogados em cima da cama, mas depois de um olhar mais atento, podia-se ver uma cabeça ruiva com um rosto quase que igualmente vermelho. O rosto da enferma se vira lentamente e seus olhos arregalam-se por poucos segundos. Cada dia que passava ela parecia cada vez mais doente.

— Lili, quem é essa? — uma crise de tosses carregadas acompanhou-a

— Então, — ela olhou para os pés — é uma história engraçada, sabe? — deu uma risadinha sem graça. — Eu não sabia o que pegar e ela disse que poderia ajudar. Mas ela não vai machucar a gente, espero. 

A garota assentiu e se curvou levemente, em forma de cumprimento, para Deméter.

— Meu nome é Alex. Minha individualidade consegue curar pessoas e ela disse que você tava meio doente, então eu — algumas tosses a interrompem — pensei que poderia ajudar. Ela parecia um pouco — a loira virou-se na direção da menina de olhos e cabelos verdes, que arrancava a pele ao redor da unha dos dedos do seu lado — aflita. E desesperada até.

— Obrigada, Alex. — ela sorri fraco e com um sorriso doce, logo depois gesticulou para que se aproximasse. — Lili, só tome cuidado na próxima vez, — Não traga estranhos para casa com a desculpa de que podem ajudar, eles podem mentir, completou metalmente — eu fiquei preocupada, você demorou bastante. 

Milhares de “desculpa” saíram da boca de Liliana enquanto ela se dirigia ao lado da moça para segurar sua mão, o que fez Deméter sorrir um pouco. Por outro lado, Alex, mesmo de costas, parecia extremamente preocupada. Suas mãos brilhavam sobre o peito da mulher numa intensidade que ninguém além dela conseguia manter os olhos abertos. Foi assim por uma, duas horas, apenas com alguns intervalos de quando Alex dava algum remédio ou colocava um pano úmido na testa dela. Enfim, a luz se apagou.

E Deméter ainda estava quente e tossia ainda mais. Alex parecia inconformada com a evolução contrária ao sentido desejado. 

Liliana, inexpressiva e ríspida, foi ao lado de Alex e disse tão baixo que parecia que falava consigo mesma.

— Você disse que ia curá-la. — Não houve uma resposta. Liliana olhou para ela e agradeceu que Deméter estava de olhos fechados: Alex não sabia mais o que fazer, ela parecia… perdida, confusa. Uma mão efervescente encosta na bochecha da loira e acaricia o lugar.

— Tá tudo bem, garota — Deméter sussurrou. — Você tentou o seu melhor. — A garota desaba com a cabeça apoiada no colchão, implorando por perdão com a voz embargada. A mão dela sobe para os cabelos louros, onde faz carícias. — Está tudo bem, não é nada demais.

Alex se levantou com dificuldade, enxugou as lágrimas do rosto e colocou as mãos de volta onde estavam.

— Eu consigo manter a temperatura dela constante, mas não consigo abaixar. Isso… — sua voz voltou a vacilar – acho que pelo menos é uma notícia boa, né?

— Tá tudo bem, querida. Você não precisa se preocupar. — Tosses e mais tosses e mais tosses. — Tá tudo bem, Alex, certo? Diga para seus amigos subirem, a temperatura despenca depois que o sol se põe. — Liliana estava prestes a perguntar como ela sabia da existência dos outros, mas a mulher foi mais rápida. — Eu conheço a minha casa, Lili, sei quando tem pessoas nela.

Alex foi mais rápida que Liliana e já estava voltando da porta quando a mesma se virou para chamar o resto. Passos começaram a ecoar e ficar mais altos, até um momento em que ouvia uma parte da conversa antes mesmo de vê-los.

— … errado você desconfiar das coisas, só precisa tomar cuidado para que isso não afete seus aliados. — A porta se abre, revelando Larissa e mais um bando de adolescentes. Nicholas, a quem aparentemente Larissa se referia mais cedo, se aproximou de Liliana de cabeça baixa.

— Foi mal se eu te assustei. Não era minha intenção.

— Tá tudo bem. Não é todo dia que saem comigo correndo por aí no ombro. — ela deu um sorriso que se espelhou no rosto dele. — Você não teve más intenções, eu acho. 

— Ahm, Liliana? — Larissa acenou para chamar a atenção dela. — Posso pegar um copo d’água?

— Claro, claro! 

Ela saiu acompanhada da professora e mais algum estudante que ela não se dá ao trabalho de ver quem é até a cozinha e enche um copo d’água de uma jarra que estava estranhamente próxima ao jardim de ervas de infusão de Deméter. 

— Lili, — obviamente que o estudante misterioso era Nicholas — você teria alguma coisa pro Lucques, mano?

Ela colocou a jarra de volta no balcão com um pouco mais de força do que deveria.

Lili?

— Liliana, foi mal, foi mal. Foi sem querer.

— Subam lá, eu já levo mais água e um chá para ele.

Larissa, seguida por Nicholas, pegou seu copo e o esvaziou antes mesmo de chegar no segundo andar direito. 

Sozinha na cozinha, Liliana pegou a chaleira, encheu-a e colocou no fogo. Qual chá fazer? Erva-doce? Jasmin? O que ajuda na cicatrização? Talvez devesse fazer para Ayla também. Se bem que Alex já usou a luzinha nela, ela parecia bem. E se alguém mais quiser? Colocou mais uma xícara de água na chaleira. Melhor sobrar do que faltar. Vai camomila mesmo.

Criou algumas flores de camomila, colocou-as num bule e aumentou o fogo da água. 

Havia tomado a decisão correta ao trazê-los até aqui? E se estiverem atrás dela, igual o ser das facas? A garota da luz consegue curar uma facada, mas não consegue baixar febres. Bem, prioridades, não? 

As vozes — especialmente as de Alex e Nicholas — ecoavam pela casa como ruídos incompreensíveis, mas algo relativamente grande deve ter acontecido, pois continuou por quase dez minutos. Se estiverem deixando Deméter mais estressada, eu enterro os nove e compacto a terra sobre eles. Veremos se ilusões ou raios de luz serão o suficiente contra um…

— LILIANA! Pelo amor de Deus, me ajuda! — Deméter gritou com forças que a garota não sabia da onde vinham. Desespero, talvez?

— EU TÔ INDO!! — tirou a chaleira e despejou o líquido fervente no bule. Completou a jarra e levou tudo numa bandeja com algumas xícaras e biscoitos.

Quando entrou no quarto, a situação dificilmente conseguiria ficar mais estranha. Deméter fazia carinho em algo que não existia, Nicholas parecia sobrecarregado e repetia “mais mitologia grega não” e Alex… bem, Alex estava abraçada em um Daniel confuso, chorando. O resto olhava a situação, em clara confusão, exceto Larissa, que não aparentava estar nem um pouco surpresa. 

— Liliana, — a enferma ofegava — quem são esses? Tipo, você trombou com eles no meio da floresta e é isso?

Um silêncio curto e perturbador se instaurou. Liliana, novamente, era o centro das atenções. Estalava todos os dedos, todas as juntas e ligações dos dedos por nervosismo. Fala alguma coisa, fala alguma coisa, LILIANA!

— É… na verdade, eu… — Inspire. Expire. Inspi… — EU NÃO SEI! Eu tava desesperada, não tava achando nada que pudesse ajudar….

— Não, não fique… — Deméter se esforça para levantar, mas seu corpo cai onde estava. Alex começou a chorar mais forte, claramente desesperada por não conseguir ajudar — Calma, todo mundo, calma! Liliana, vem aqui.  — A jovem se ajoelha ao lado dela e a outra se aproxima para sussurrar em seu ouvido. —Você sabe o nome de algum deles?

Ela parou e, por alguns instantes, nenhum nome veio à sua mente. Nenhum exato, além do que mais foi repetido hoje. Ela sussurrou no ouvido de Deméter.

Tem um deles, o loirinho desvairado, ele se chama Nicholas. E… — tava na ponta da língua, como era mesmo? Era mais exótico… — acho que um deles se chama Batata.

Batata? Que tipo de mãe dá um nome desses pro filho?

Tem louco pra tudo. —As duas se entreolharam; Deméter com estranhamento e Liliana com uma expressão de “fazer o quê?”.

Deméter se afasta da menina e olha para o grupo de estudantes, com incerteza das palavras que dirá.

— Quem de vocês é o Batata?

Todos processaram a pergunta, especificamente o nome, por alguns segundos. Alex virou o rosto inchado para a cama, com os olhos ainda vermelhos e questionou o nome. Nicholas, por outro lado, virou-se para Sakata e gargalhou.

—SAKATA — disse enquanto ria. O grupo aos poucos começou a rir, depois gargalhar

—Eu vou embora. — o garoto disse, indo em direção à porta, mas foi impedido por Ayla. Por um milésimo de segundo, a visão de Liliana ficou turva e, quando olhou para Nicholas novamente, este usava uma fantasia de batata.

—AH, NÃO, CARA! — gritou o menino batata — Era pra ser no Sakata…

— Deméter, — Daniel, com um rosto sério, soltou Alex — O que que os deuses estão lutando? De onde veio tudo isso? Sabe, a gente tá muito confuso.

Todos os sorrisos morreram. O ar, antes imperceptível, tornou-se sufocante.

Deuses? O que diabos tá acontecendo?

— Perai, perai, vamos por partes então — respondeu serena. — É meio difícil, é muita coisa pra minha cabeça. — Alex olhava para Dani com raiva, provavelmente estava preocupada com sua paciente. — Liliana, eu… — segurou as mãos da jovem e a olhou ternamente. 

O efeito é imediato — toda a confusão, vergonha e preocupação sumiu no momento em que as orbes verdes se encontraram. Ela estava bem, as duas estavam bem. 

— Eu vou explicar muita coisa, tá? Coisas que provavelmente… — ela expirou, derrotada — eu não queria te contar agora, mas elas terão que ser contadas agora também, tá bom?

A garota levantou, andou até a bandeja com xícaras e se serviu com uma. Alex também se serviu e sentou ao lado da professora, que sorriu fraco. Deu um gole e voltou ao lado da enferma, pronta para qualquer que fosse a notícia.

 Por favor, que ela não seja do governo. 

Deméter finalmente perguntou o nome de cada um e, quando Sakata respondeu, ela olhou para a jovem. Não era Batata. 

Desculpa, eu fiquei nervosa, respondeu.

— É o seguinte, crianças — sentou-se apoiada na cabeceira, com auxílio da amiga — “Deméter” não é um nome de coincidência, meus pais não me deram esse nome à toa. Pessoas de várias regiões diferentes são escolhidas por motivos diferentes para reencarnar e representar coisas, chamando-as de Aspectos, mas vocês chamam de Deuses. Eu, no caso, a Deusa-Mãe, né… agricultura, árvores, plantas… tudo relacionado a isso, até da maternidade. — Seu olhar caiu sobre seu colo, como se sentisse o peso da responsabilidade depois de muito tempo — Por um momento, eu pensei que vocês eram as encarnações delas, mas… acho que estou um pouco enganada sobre isso. Vocês são os Escolhidos dos Aspectos, imagino. Mesmos poderes, mas não são eles. Hércules era um Escolhido. Existiam outros, obviamente, mas ele é o mais memorável. Eu pensei e… — olhou para Nicholas, depois Daniel, como uma criança olha quando pergunta se o Papai Noel existe: esperança de ouvir um “sim”— Vocês viram elas? Elas estão bem? — Alex e Lucques assentiram com vigor, como se conversassem com elas várias vezes — Isso explica muita coisa. Algum de vocês tem noção do porquê os dias estarem durando menos, além de ser inverno?

— Isso tem a ver com você?  — Daniel perguntou, após negar a pergunta feita pela deusa.

— Não, mas acaba me prejudicando de certa forma. Eu vejo que vocês são talentosos, especialmente você, Alex. Seu conhecimento de medicina é surpreendente para alguém da sua idade, mas medicina convencional não vai ajudar, nem chás, ervas… qualquer coisa que seja. — Alex dá um gole no seu chá e seu nervosismo fica evidente com a tremulação de suas mãos. — Considerando que eu não tenho muito tempo, depois que o inevitável acontecer, alguém precisa se tornar a Deméter 2, 3, 5… eu já perdi a conta da geração que estamos.

Deméter virou para a jovem, pela primeira vez desde que revelou sua real identidade, com os olhos marejados com lágrimas e um pouco de culpa.

— E eu escolhi você, Liliana.