Contos

Batatas – parte I

By Koli

September 22, 2022

Tinha tanta certeza de que estava perdida como sabia seu próprio nome. 

As árvores na sua frente eram idênticas às da direita, à esquerda e àquelas que viu há umas duas horas atrás. Estava tão concentrada em cumprir sua tarefa que não reparou para onde ia, nem deixou algum tipo de rastro por pura imbecilidade, mas qualquer um ficaria maravilhado com a quantidade de árvores verdadeiras onde quer que estivesse depois de viver todos os seus 16 anos em São Paulo. 

Especialmente Liliana. Não era a primeira árvore de seiva que via, mas era a primeira que via e não tinha criado com sua individualidade.

Estava praticamente tatuado em sua mente, depois de tantas aulas de história: Em 2034, a humanidade descobriu um tipo de “potencial interno, gutural e visceral” que, ao ser instigado, levou à aquisição de poderes, mais tarde intitulados como “individualidades”. 

Uma terceira guerra ocorreu por conta dessas novas habilidades, reescrevendo o mundo radical e irreversivelmente. Sua mãe lhe disse uma vez que, quando pequena, sonhava em conhecer o castelo do Mickey, nos Estados Unidos…

Os tempos realmente eram outros, não?

Flavio Vaccio, pai de Liliana, foi um dos corajosos guerreiros italianos que lutou por seu país, mas não voltou. Em seu lugar veio uma carta amarela, cujo significado a garota só descobriria quando a família de uma colega recebesse uma idêntica.

Soldado desaparecido em ação.

Não foi tão marcante para a pequena, no momento. Só tinha 4 aninhos. 

Às vezes, quando sente-se ameaçada, Liliana imagina os resquícios de memória de seu pai — o cheiro do seu perfume amadeirado e a sensação do couro de sua jaqueta no rosto quando a aninhava, dizendo que a tempestade logo passaria e que nada a atingiria enquanto “papà” estivesse ali. 

E foi o que ela fez. Antes mesmo que tivesse uma crise de pânico, colocou o cesto com ervas no chão e prendeu-se à memória. Ela estava perdida, mas estava bem. Estava segura. Deméter a encontraria. Sua mãe a encontraria. 

Inspirou.

Expirou.

Inspirou.

Como saberia como era uma erva medicinal? Sua boca estava começando a ficar dormente.

Sua individualidade tinha um limite, assim como a de todos, que era exclusivo para ela: para conjurar uma planta, precisa conhecer seu formato e gosto, pelo menos.

Ela não sabia como era, como cheirava e muito menos qual era o gosto de uma planta medicinal.

Deméter precisa dessa erva, ela deve saber qual exatamente. Inferno, por que existe tanto tipo de planta? Por que aparece cada vez mais?!

Expirou.

Ouviu galhos quebrando a distância. Um galho formou-se em sua mão numa manifestação de seu instinto mais primitivo e posicionou-se para bater na primeira coisa que se movesse. Uma sociedade segura não apaga a necessidade de se proteger.

Algo andava em sua direção sem se importar em ser furtivo ou não. O bastão improvisado começava a escorregar de suas mãos, o suor frio escorria por seus dedos como se sangrassem.Perfume amadeirado e couro. Perfume amadeirado e couro. Madeira e couro. Galho e pele. Bastão e eu.