“Minha percepção talvez tenha nascido quando, aos 5 anos, presenciei um acidente de carro bem feio na frente do meu quintal. Uma garotinha foi decapitada e sua cabeça rolou até meus pés, seus olhos me fitando. Sua expressão nunca me deixou completamente.”

É assim que o renomado, cultuado e por vezes execrado fotógrafo Joel-Peter Witkin conta seu primeiro contato com sua tão peculiar sensibilidade artística e, mais ainda, com um dos temas principais de seu corpo de obra: a morte.

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Nascido em 1939 em Nova Iorque, filho de pai judeu e mãe católica, viu seus pais se separarem muito cedo, devido ao conflito entre suas religiões. Morava com a mãe mas trabalhava com o pai, que era vidraceiro junto com os tios e irmãos do futuro fotógrafo.

A fascinação por vidro que Witkin assumidamente mantém nasceu desse contato, ao quebrar vidros com seus irmãos. Em suas palavras “Se a fotografia é a arte de fixar sombras, o vidro é o meio que transfere as sombras para o filme”.

Foi também com seu pai seu primeiro contato com a fotografia: este lhe mostrava desde muito novo fotos de grandes revistas americanas como a Life, dando ênfase sempre nas menos convencionais ou esteticamente bonitas.

Para o fotógrafo, era a forma do pai lhe dizer que adoraria ser capaz de realizar aquele trabalho, mas não era capaz, ao mesmo tempo que via no filho o potencial de trilhar esse caminho. E foi exatamente o que ele fez.

Com apenas 16 anos, teve uma de suas fotografias escolhidas pelo curador Edward Steichen para integrar o acervo permanente do MoMa de NY.

Sempre procurando trabalhos em que pudesse ficar em contato com a fotografia, em gráficas e laboratórios de revelação, até se alistar no exército em 1961. No exército, foi incumbido da documentação fotográfica, tarefa que realizava com prazer e especial atenção quando se tratavam dos acidentes militares.

Durante sua estadia na Cidade do México, visitava diversos necrotérios a fim de fotografar corpos recém-trazidos pela polícia, geralmente antes da autópsia. Uma de suas mais famosas obras, Glass Man.

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Após semanas procurando o objeto ideal para uma fotografia, o autor resolveu estender sua estadia e, 4 dias após a data inicial de sua partida, um caminhão chegou com 4 corpos. Dentre eles, o de um punk, visivelmente uma “pessoa que teve sua cota de maldade”.

Depois de algumas fotografias sem sucesso, Witkin resolveu liberar o corpo para que os legistas pudessem conduzir a autópsia. Retirados piercings e todos os procedimentos cirúrgicos realizados, o fotógrafo se deparou com algo completamente diferente.

O corpo parecia estar no exato instante em que buscava a redenção, em que suas atitudes estavam sendo pesadas por uma entidade superior. “Seus dedos, sem exagero, cresceram 50% depois das intervenções no corpo, como se estivessem buscando alcançar a eternidade” disse Witkin.

A busca de objetos em necrotérios e cemitérios levou o fotógrafo muitas vezes a ser detido como “ladrão de tumbas”. Isso de deve muito a algumas de suas fotos menos “sutis” como Glass Man, em especial aquelas em que utiliza apenas partes dos corpos encontrados.

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Temas mitológicos e religiosos também permeiam a obra do artista, que faz releituras bastante perturbadoras de cenas clássicas bíblicas e da mitologia grega.

Uma das missões que Witkin se impôs foi justamente a de enfrentar o abjeto e o que normalmente não consideramos esteticamente belo ou mesmo agradável. Suas fotografias confrontam essas noções e buscam resgatar uma beleza poética, mesmo que mórbida, em todo tipo de corpo.

Seus anúncios de procura de modelos são um exemplo dessa busca pela beleza no não-convencional:

“Pinheads, dwarfs, giants, hunchbacks, pre-op transsexuals, bearded women, people with tails, horns, wings, reversed hands or feet, anyone born without arms, legs, eyes, breast, genitals, ears, nose, lips. All people with unusually large genitals. All manner of extreme visual perversion. Hermaphrodites and teratoids (alive and dead). Anyone bearing the wounds of Christ.”

Posteriormente, o artista ainda incluiu

“Women whose faces are covered with hair or large skin lesions willing to pose in evening gowns. People who live as comic-book heroes, boot, corset and bondage fetishists. Anyone claiming to be God. God.”

Ou seja: todo tipo de pessoa que não passa despercebida na rua e recebe olhares de curiosidade e, não raro, de reprovação também.

cisne lobo satiro Gods of Earth and Heaven, LA, 1988Outra obra famosa sua é uma releitura de uma famosa fotografia de Man Ray:

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(à esquerda, “Girl WHo Used to Be Bird” de Witkin e à direita, “Le Violon d’Ingres” de Man Ray)

O processo pelo qual Witkin submete suas fotografias é rigoroso: envolve a ampliação dos negativos, a utilização de papel manteiga para “desfocar” um pouco as fotos, bem como a adição de todas as imprecisões e arranhões meticulosamente calculados; tudo isso deixa suas fotografias com um ar atemporal que dificulta sua datação.

Para finalizá-las, o autor as cobre com cera de abelha e aquece, aumentando o brilho da impressão. Por ser todo um processo bastante lento, sua produção é de mais ou menos 10 obras por ano.

Com fotografias que desafiam nossa percepção e nossos valores morais e estéticos, Joel-Peter Witkin atesta uma das mais desconfortáveis facetas da condição humana, aquela que tentamos a todo custo esquecer: somos todos imperfeitos e, sobretudo, mortais.

Minha barba. Minha vida.