“Vós sois o sal da terra e a luz do mundo”.

De um lado um dos cineastas que mais admiro e cultuo, Wim Wenders, criador da obra “Asas do Desejo”, o meu filme preferido que revejo de tempos em tempos com a mesma emoção da descoberta inicial. Do outro um grande fotógrafo, construtor de imagens impactantes, carregadas de poesia e reflexão: Sebastião Salgado.

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Do casamento criativo destes dois artistas nasce “O Sal da Terra”, filme co-dirigido por Juliano Salgado que ganhou vários prêmios e concorreu ao último Oscar. Não é uma tarefa das mais fáceis criar um documentário centrado em uma persona viva, sem cair na tentação de um registro meramente informacional e biográfico. Wim Wenders, com sua habitual sagacidade, opta por um registro poético que emociona sem ser piegas. De início a voz do diretor narra a sua paixão pelas imagens produzidas pelo documentado, registrando sua ligação e cumplicidade com o material fotográfico a ser trabalhado. Suas conhecidas e belas tomadas em preto e branco, retratam Sebastião Salgado em seu ambiente de trabalho; também colhe suas impressões e depoimentos com a câmera em close, revelando os fortes traços do rosto do entrevistado. Algumas vezes este mesmo rosto se funde com as imagens, criando uma composição estética que impressiona. Salgado também comenta e explica seus trabalhos mais relevantes, colocando o espectador como cúmplice de seus sentimentos e emoções a cada nova experiência criativa.

Como que dividido em capítulos de um grande Livro, o diretor tem o cuidado de não cair no maniqueísmo conteudístico. O acachapante “Êxodo”, um instigante projeto realizado ao longo de seis anos, narra-registra a história de povos em fuga da pobreza, miséria e opressão, apresentando imagens de forte realismo sendo, talvez, o momento mais emocionante e emocionado do filme. Wenders, sabiamente, opta pelo registro silencioso, com a voz pausada do fotógrafo narrando suas percepções e, implicitamente, apontando para o seu dever cívico, como artista antenado aos problemas sócio-culturais da humanidade. A trilha sonora embala poeticamente a sucessão das comoventes imagens que tecem e reescrevem a dura realidade destes frágeis seres humanos a procura de um lugar para viver em paz e em harmonia com seus semelhantes.

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Dialogando antiteticamente com as imagens degradantes e violentas de “Êxodo”, o diretor cria um interessante contraponto ao apresentar o projeto “Gênesis”, que “narra” o olhar mais positivo do fotógrafo, registrando geografias cujo ecossistema foi pouco explorado pelo homem nos quatro cantos do planeta. O que vemos agora são imagens de uma beleza arrebatadora. O final do documentário reserva novas cenas que conotam a fé de Sebastião Salgado na humanidade. Wim Wenders já nos havia alertado: “Um fotógrafo é, literalmente, alguém que desenha com luz, um homem que escreve e reescreve o mundo com luzes e sombras”.

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Alguns críticos alegam que o filme é superficial e não aborda a linguagem e a recepção do trabalho de Sebastião Salgado, sobretudo a polêmica (diga-se de passagem, banal e pouco significativa dada a importância de sua obra) em criar a “estetização” de imagens que registram a desgraça humana.

Sou suspeito, pois adorei o filme (e como já disse, amo a obra de Wim Wendes), mas creio que a opção do diretor foi retratar o artista pensador Sebastião Salgado e sua relação com o mundo que habita. A produção fotográfica de Sebastião Salgado pode gerar outros enfoques e material para novas obras; o filme de Wenders é um olhar possível, poético e permeado de afeto: um discurso áudio-visual amoroso.

“O Sal da Terra” do título, já nos sugere que os seres humanos que realmente fazem a diferença no mundo são aquelas que atuam como Sal e Luz, como na epígrafe bíblica que abre este texto. Sebastião Salgado (que traz o Sal no próprio nome), como todo grande artista nos convida a reconhecer estes pontos de luz de sua obra e, ao apreciá-las, talvez até inconscientemente, renovamos nossas esperanças na construção de um mundo melhor e mais justo. Nos tempos áridos em que vivemos precisamos desta Luz.

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João Carlos Gonçalves (Joca)

Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.

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