(foto de capa: ilustração de Javier Crux)

O mundo dos quadrinhos girava em torno de super heróis irreais e distantes do complexo e contido mundo em que vivemos. Seus personagens pouco ou nada sentiam dos dramas do dia a dia, da frustração, da impotência, da servidão à um governo com o qual não concordamos, com a total apatia da maioria dos empregos disponíveis.

Tudo isso mudou em 1986.

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Watchmen, HQ do então em ascensão Alan Moore, com ilustração de Dave Gibbons, nos mostrou um mundo muito igual o nosso. Aliás, exatamente igual, com duas diferenças básicas: a ideia de alguns inconformados com a violência de vestir fantasias e atuar como vigilantes acabou dando certo e o aparecimento de uma (sim, somente UMA) entidade com poder sobre-humano, o Dr. Manhattan.

Watchmen mostrou que os heróis não são infalíveis, não são insensíveis à suas emoções, seus medos, suas paixões. Mostrou que os heróis podem errar, podem matar. Mostrou o potencial de histórias em quadrinhos como obras literárias de fato, tirando da cabeça de muitos a ideia de que é apenas para crianças.

Ainda por cima, a série rendeu um filme muito bonito, com uma trilha sonora fantástica e provocou ira de fãs e crítica ao provar de uma vez por todas que histórias bem elaboradas se tornam simplistas na grande tela, a ponto de incomodar até.

Alan Moore (que já foi citado aqui como o criador de Constantine) nasceu na Inglaterra em 1953 na pequena cidade de Northampton. Aos 16 anos foi expulso da escola por vender LSD no pátio.

Restou-lhe trabalhar com alguns amigos em uma pequena revista lançada na cidade, trabalho que alguns anos depois o levou a ser contratado como desenhista para uma revista de música da época. Suas habilidades como desenhista o fizeram decidir seguir apenas com a parte escrita do negócio.

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Seus primeiros roteiros foram para a Doctor Who Weekly e a clássica 2000 AD. Pouco depois começou a escrever também para a Warrior, antologia de quadrinhos britânica, onde publicou o clássico Miracleman e uma de suas maiores obras, a HQ recheada de anarquismo e adaptada ao cinema V de Vingança.

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V de Vingança, lançada em 1982 foi um grande marco nas HQs. Sua Londres fascista e ditatorial parecia uma resposta criativa ao início dos duros anos de ferro de Margaret Tatcher.

O personagem principal, V, é controverso, pouco sabemos sua origem e de seu destino; tudo que sabemos é sua ferrenha motivação em destruir aquele governo hipócrita que oprime a todos e implantar o anarquismo, a não-forma de governo em que todos controlam a si mesmos, uma autogestão.

Sem jamais mostrar o rosto, parecendo por vezes onipotente e se comunicando somente por versos e rimas, o personagem central da trama transcende o simples herói: é a personificação de uma urgência, de uma ideologia, de uma ideia. O personagem personificou a frase do célebre ativista pelos direitos raciais nos Estados Unidos Medgar Evers, que disse certa vez que “você pode matar um homem, mas jamais pode matar uma ideia”.

A HQ rendeu a Moore o prêmio de melhor quadrinista do prêmio britânico de literatura Eagle Awards em 1982 e 1983.

Com o sucesso, a fama de Moore atravessou o oceano e o autor foi chamado para escrever para a série Monstro do Pântano, trabalho que o alçaria à fama mundial, pela gigante DC Comics.

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Com um suspense bem desenvolvido, uma mitologia rica e atenção à diversas questões contemporâneas como problemas climáticos e energia nuclear, Moore transformou o Monstro do Pântano de um cientista acidentado em um poderoso avatar de todo o verde, rede mística que une toda forma de vida vegetal do planeta terra.

Em 1986, Moore escreveu O Que aconteceu com o Homem de Aço, uma “história imaginária” para o Super-Homem que contava como seriam os últimos dias do herói na terra.

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A ideia era um tanto radical: apresentar uma visão do futuro em que o herói não mais aparecerá, mas ao mesmo tempo sem impossibilitar todas as possíveis aventuras vindouras. O resultado foi bastante interessante é tido como uma das grandes histórias do homem de aço.

Se Moore já havia obtido sucesso com um dos maiores ícones da DC Comics e de toda a história das histórias em quadrinhos, a consolidação de seu reconhecimento e de sua contribuição para o meio veio em 1988 com Batman: A Piada Mortal. 

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A história, ao invés de focar o já conhecido homem-morcego, tem como principal centro das atenções seu maior inimigo: o insano e imprevisível Coringa, em toda sua glória psicótica.

A trama apresenta a real influência que o vilão exerce sobre aqueles que lutam contra sua maldade, em especial Batman e o Comissário Gordon. A história é das mais sombrias, ao revelar em detalhes muitas das crueldades perpetradas, algumas até que foram censuradas na versão final da HQ.

A relação ambígua entre Batman e seu arquirrival também é explorada, levando até mesmo a duvidarmos da sanidade do próprio herói, que continuamente escolhe poupar a vida de bandidos que sabe que ainda tirarão a de muitas pessoas de bem.

O final, bastante sutil e extensamente debatido, deixa em aberto se, pela primeira vez, o homem morcego dá ouvidos às, por vezes assustadoramente lúcidas, loucuras do Coringa.

Durante a década de 90, Moore ajudou a Image Comics (fundada por Rob Liefeld, entre outros) a elevar o nível de seus roteiros, tendo colaborado com histórias para o Supremo, de Rob Liefeld (uma paródia do Super Homem) e também para o Spawn, o herói infernal criado por Todd MacFarlane.

No final dos anos 90, Moore teve a oportunidade de criar seu próoprio selo de quadrinhos e assim nasceu a America’s Best Comics (ABC), pela qual vem lançando desde 1999 publicando as histórias da Liga Extraordinária (que já foi adaptada para os cinemas, contando até com o eterno 007 Sean Connery), Promethea (que apresenta alguns dos interesses do autor em magia e ocultismo).

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Além das HQs,  o autor lançou também um romance, A Voz do Fogo, e vem trabalhando em um grande épico, Jerusalem.

Controverso e com opiniões bem fortes, Alan Moore não suporta as adaptações de suas HQs ao cinema (“Não vi e não gosto” como costuma dizer), não cansa de expressar sua discordância nas redes sociais para com outras personalidades da indústria e sempre, SEMPRE, deixa a todos nós ansioso para suas próximas histórias.

Minha barba. Minha vida.