Eric de Carvalho*

“Nerd mesmo é publicar um artigo nerd sobre o conceito de nerd no dia do Orgulho Nerd” (Carvalho,E.)

Resumo
O artigo pretende estimular uma reflexão sobre a questão das identidades culturais estabelecidas pelo consumo simbólico de produtos midiáticos tendo como metodologia a análise de eventos e atividades performáticas nos quais os participantes se fantasiam de personagens de filmes e desenhos animados. Nesses evento, grupos de fãs de produtos midiáticos, caracterizados como personagens de filmes, quadrinhos e desenhos animados, ritualizam seu culto à mídia, reforçando o imaginário sobre os produtos midiáticos que representam. Este artigo propõe uma discussão antropológica sobre a recepção de produtos midiáticos realizada por esses grupos, estabelecendo um diálogo entre a noção de liminaridade segundo Victor Turner com a questão da identificação por meio do consumo como estudado por Néstor Garcia Canclini no ceontexto de mediação cultural como proposta por Jesus Martin-Barbero.


Palavras-chave: consumo cultural; Estética da Recepção; identidade cultural; Drama Social; jogos.


Introdução
Em minha dissertação de mestrado “TATTOO – Incorporações de produtos midiáticos por meio de tatuagens”, realizei um estudo de recepção com pessoas que possuíam tatuagens de imagens de produtos midiáticos; a partir de minha metodologia de pesquisa, essas imagens poderiam ser originárias de desenhos animados, quadrinhos, filmes, games ou de qualquer outra mídia. Todas pessoas que entrevistei, mesmo possuindo diferentes repertórios culturais, possuíam um vínculo tão intenso com os personagens representados em sua pele, que se apropriaram de suas imagens de forma a perenizá-las em seu corpo. Fossem homenagens aos personagens, fossem iconizações de lembranças, eram registros perenes de vínculos com o produto midiático retratado.

Após diversas entrevistas e análises, interpretei esse processo de recepção como um rito de apropriação cultural que estabele uma identidade cultural associada ao consumo dos produtos midiáticos em questão; ora por uma relação de culto entre receptor/produto da mídia, ora por uma associação mnemônica atribuída ao produto pelo receptor, configura uma relação identitária entre a mídia e seu receptor, de forma que corpo e imagem se tornam indissociáveis. Mais que uma prática de apropriação cultural, eis que se trata de uma incorporação literal das narrativas midiáticas, atribuição de uma
corporeidade a um imaginário criado pela mídia e que exerceu tal impacto sobre a paisagem cultural de um indivíduo, que terminou por influenciar de forma determinante a sedimentação dos valores pessoais que compõem sua identidade cultural. Fazendo uma analogia com os povos ditos primitivos, da mesma maneira que aqueles registravam representações de animais em sua pele para cultuar o espírito-animal ao qual seu clã se associava, esses receptores representam produtos midiáticos para associar sua identidade cultural aos valores do produto a que consomem.


É inquestionável que a incorporação literal de imagens da mídia por meio de tatuagens é uma prática cultural que estabelece um vínculo permanente entre receptor e produto midiático representado; porém, não se trata do único rito de culto à mídia na sociedade contemporânea. Por meio da fruição do produto midiático e sua reelaboração em pequenos ritos cotidianos, o fã promove a disseminação do imaginário do produto, reforçando sua mitologia e sedimentando seu valor de culto por meio de ritos de apropriação tais como coleções de miniaturas, produção de fanfics e imitações dos personagens cultuados. Esta última forma de apropriação me interessa, em específico, pois, ainda que a sociedade tenha acesso a tecnologias comunicacionais cada vez mais modernas, as pessoas, em especial os grupos com interesses em comum, não abdicam da experiência tácita promovida pelos ritos performáticos; aparentemente, experiências sensoriais mediadas por aparatos tecnológicos (como realidade virtual) não provocam a mesma sensação catártica de uma experiência performática de representação do outro.


A capacidade de tornar-se outro e o mistério do jogo manifestam-se de modo marcante no costume da mascarada. Aqui atinge o máximo a natureza “extraordinária” do jogo. O indivíduo disfarçado ou mascarado desempenha um papel como se fosse outra pessoa, ou melhor, é outra pessoa. Os terrores da infância, a alegria esfusiante,a fantasia mística e os rituais sagrados encontram-se inextricavelmente misturados nesse estranho mundo do disfarce e da máscara (HUIZINGA, 1990, p.16)

O estudioso Johan Huizinga, em sua obra Homo Ludens, analisa como o jogo e a representação são necessários ao homem e ocupam um espaço fundamental no tecido da cultura. Em sua leitura, jogo, performance e rito são parte significativa da natureza humana; quando o homem joga, brinca, dança, enfim, se entretém, ele não apenas reproduz o local da cultura como também a reconstrói. Desta forma, orientei minha pesquisa da ritualística do receptor no culto à mídia por meio da análise de ritos de performances miméticas de produtos midiáticos como um processo de construção de uma cultura nerd por meio da estética da recepção.


Ritos performáticos como processo da Estética da Recepção

O processo de apropriação cultural de um produto midiático por meio de ritos performáticos pode ocorrer de duas maneiras: deliberadamente ou de forma ritualizada. De forma deliberada, o fã de um produto midiático pode se apropriar de termos e expressões nele utilizadas para compor seu repertório cultural por meio de um processo de hibridação de seus valores com aqueles do produto imitado; isso também pode acontecer de forma espontânea e sem a consciência do receptor. Já na forma ritualizada, o receptor intencionalmente imita os personagens do produto midiático, mimetizando seus gestos e falas em uma representação performática da narrativa, forma de representação que é legitimada em eventos organizados tais como os cosplays e jogos de live action. Esses jogos são espaços lúdicos que permitem a suspensão temporária dos papéis sociais dos receptores protagonistas para que incorporem os personagens que são objetos de sua adoração, permitindo o culto ao produto midiático e o reforço de sua imagem no imaginário social. “(…) o jogo não é vida „corrente‟ nem vida „real‟. Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida „real‟ para uma esfera temporária de atividade com orientação própria” (idem, p.11).

Retomando a analogia utilizada anteriormente: enquanto as sociedades indígenas cultuavam seus totens por meio de elementos a eles associados e que, portanto, serviam para representá-los (por exemplo, segurando penas de águia para conjurar um espírito de uma ave dessa espécie), o fã da narrativa de ficção Senhor dos Anéis pode demonstrar seu culto a esse produto midiático ao utilizar uma prótese que simule as orelhas pontiagudas do protagonista faérico Frodo. Em ambos os casos, o que pode ser observado é um processo mimético que remete à lei da similaridade conforme estudada pelo antropólogo escocês James Frazer em sua obra “O Ramo de Ouro”: pela mera imitação de um efeito, o mestre-de-rituais poderia reproduzi-lo. Assim, o indígena que segura as penas de uma águia pode conjurá-la enquanto que um fã de Senhor dos Anéis que utiliza a prótese de orelha pode acreditar que ouve melhor, ou, ao menos, pode fantasiar com esta possibilidade. Como escreve Huizinga: “O culto é, portanto, um espetáculo, uma representação dramática, uma figuração imaginária de uma realidade desejada” (idem, p.19).


A mímese do produto midiático realizada pelo receptor é a sua forma de voltar a experimentar as sensações adquiridas na fruição de uma narrativa que aprecia e recontála à sua maneira, sendo fiel aos elementos matriciais constitutivos do produto, para que este não perca sua identidade, mas interferindo em sua estrutura com elementos narrativos de seu repertório cultural pessoal. É uma forma ritualística de narração de histórias a partir da estética da recepção, ou seja, de modo que o receptor se torna também produtor da cultura.


Movimentos como o cosplay e o live action (…), demonstram como os fãs já se apropriaram desses produtos desde que passaram a fruí-los. São manifestações culturais representativas da “estética do receptor”, tão emblemáticas quanto a tattoo e, assim, merecedoras de uma observação científica apurada que pode revelar a lógica da hibridação entre produtos midiáticos e histórias de vida, cada vez mais perceptíveis no cotidiano de receptores que escolhem por escrever para si uma trajetória pessoal mais ficcionada (CARVALHO, 2010, p.172)


Como foi explicado anteriormente, o ponto de partida desta reflexão é que o receptor de um produto midiático se apropria de elementos dessa narrativa para recriá-la por meio de performances que, não somente a reproduz como a reinventa. A questão que, neste momento, se coloca é a observação de tal prática cultural como a manifestação da “estética da recepção”.

É sabido que a cultura da mídia trama o tecido do cotidiano, influenciando comportamentos e inspirando práticas culturais no cenário urbano. O estudo dos ritos performáticos de mimese de produtos midiáticos como forma de apropriação cultural permite um debate entre recepção e cultura por meio de uma mediação que reorganiza os vínculos entre a paisagem cultural da sociedade e os sistemas simbólicos apresentados pela mídia. Trata-se de um fenômeno de poética por meio da incorporação de uma experiência estética pelo receptor, um deslocamento de sentido de um produto surgido na mídia para a experiência catártica da performance. Esta mediação cultural promove um processo poético-estético realizado pelo receptor.


“Estética da recepção” é um termo surgido na Universidade de Konstanz, na Alemanha, nos anos 60, para designar uma poética gerada por uma experiência estética: ao invés de centrar a análise do processo comunicativo no emissor ou na mensagem, concentra o foco da análise na recepção. A apropriação da mensagem e a produção de novos sentidos pelo receptor também remetem aos estudos de Paul Ricoeur, cuja visão da hermenêutica se desloca de seu sentido de análise de uma obra para uma interpretação cujo sentido foi atribuído pelo receptor; um deslocamento do texto para o contexto ou, em termo utilizado pelo autor, “do texto à ação”, proposta que foi incorporada à teoria das mediações, na qual Jésus Martín-Barbero, discípulo de Paul Ricoeur, propõe um deslocamento do olhar dos “meios às mediações”, considerando a fruição do receptor como elemento fundamental da análise da comunicação.


A comunicação se tornou para nós questão de mediações mais do que meios, questão de cultura e, portanto, não só de conhecimentos, mas de reconhecimento. Um reconhecimento que foi, de início, operação de deslocamento metodológico para re-ver o processo inteiro da comunicação a partir de seu outro lado, o da recepção, o das resistências que aí têm seu lugar, o da apropriação a partir de seus usos. Porém num segundo momento, tal reconhecimento está se transformando, justamente para que aquele deslocamento não fique em mera reação ou passageira mudança teórica, em reconhecimento da história. (MARTÍN-BARBERO, 2008, p.28)


Todos estes autores enfatizam a análise da recepção da mídia como local de produção e reprodução cultural. A análise desses ritos performáticos de mimese enquanto manifestação cultural do receptor revela a apropriação dos produtos midiáticos não somente como mera repetição, mas produção de significados sob a lógica de um jogo que não atua apenas como elemento de promoção do entretenimento, mas também como influenciador de identidades culturais e sentimento de pertença.

A irmandade Nerd
O título acima, assim como o título do próprio artigo, remete a um imaginário nerd disseminado pela mídia. Nos filmes norte-americanos dos anos 80 e 90, os nerds eram apresentados como jovens estereotipados que cultivavam seus interesses por assuntos científicos e produtos midiáticos ligados ao gênero da ficção científica em detrimento de uma participação nos ritos fundamentais da vida acadêmica, como, por exemplo, nos ritos de iniciação para o ingresso em uma das “Irmandades” (equivalentes às “repúblicas” no Brasil) de universitários. Como regra geral, nesses filmes, os alunos chamados de nerds eram solitários e só conseguiam enfrentar as ações de bullying praticadas pelos membros das Irmandades quando se organizavam em torno de um grupo de interesses próprio (no caso, a resistência ao bullying), ou seja, ao fundar sua própria Irmandade.


Embora se trate de uma estrutura narrativa bastante elementar e reducionista, essas comédias norte-americanas representavam o nerd como uma pessoa estigmatizada com dificuldade em manter um convívio social. Ao passar das décadas, com uma crescente aceitação da diversidade cultural, este termo adquiriu novos significados, perdendo sua conotação pejorativa e adquirindo um tom bem humorado, de brincadeira sem intenções de humilhação do alvo da piada. Em entrevista realizada para a dissertação Tattoo, o artista plástico Fernando Bueno explica a resignificação do termo nos tempos atuais:


Hoje em dia é legal, é cool. Mas, assim, não é que a gente é nerd. A gente passa cinco horas discutindo a busca do Spock, tá ligado? A gente se indispõe com nossas namoradas, elas ficam putas… Às vezes, passamos horas discutindo a Tropa dos Lanternas Verdes… Não é que a gente é nerd clássico, usa óculos fundo-de-garrafa, tem espinhas,(…). Acho que é uma coisa nova. O nerd mudou! (in CARVALHO, 2010, p.66).

Frente a esta reflexão, a questão que se impõe é: de que forma ocorreu o deslocamento de sentido do termo nerd ou, ainda, a alteração da percepção pública do hábito de consumo de produtos midiáticos de algo incomum e anti-social para algo cool e socialmente aceitável?


A resposta a esta questão passa pelo aperfeiçoamento das mídias de massa e pelo surgimento de novas tecnologias comunicacionais que permitiram aos conglomerados de mídia desenvolver cada vez mais produtos midiáticos para uma audiência globalizada ávida pelo consumo desses e de seus subprodutos, como é o caso de produtos licenciados com a marca de personagens de filmes e desenhos animados. A internet e o advento do fenômeno da globalização permitiram uma equalização dos hábitos de consumo de cidadãos de todo o mundo, que têm as mesmas narrativas disponíveis para consumo, possibilitando o surgimento de um mercado global de públicos consumidores para produtos midiáticos.


Neste contexto sociocultural, qualquer sujeito aficcionado por narrativas midiáticas ligadas ao gênero sci-fi pode ser considerado (ou mesmo se auto-intitular) um nerd. O termo já não designa uma pessoa anti-social, mas, sim, um ávido consumidor de narrativas midiáticas sci-fi. Assim, hoje é comum haver agrupamentos e eventos nerds no cenário urbano. O nerd não está mais sozinho.


Este fenômeno de profusão e reprodução de produtos midiáticos globalizados e globalizantes é passível de uma análise pela perspectiva do antropólogo Néstor Garcia Canclini, que analisa o estabelecimento de identidades culturais por meio do consumo de bens simbólicos, deslocando o estudo do produto midiático para o campo da cultura e sua influência nas práticas urbanas.


Não se trata, é claro, de retornar às denúncias paranóicas, às concepções conspirativas da história, que acusavam a modernização da cultura massiva e cotidiana de ser um instrumento de poderosos para explorar mais. A questão é entender como a dinâmica própria do desenvolvimento tecnológico remodela a sociedade, coincide com movimentos sociais ou os contradiz. (…) os sentidos das tecnologias se constróem conforme os modos pelos quais se institucionalizam e se socializam. (GARCÍA CANCLINI,
2000, p.308).

Como resultado do processo de transnacionalização das tecnologias, García Canclini observou o surgimento do fenômeno da desterritorialização, compreendida como a perda da relação natural da cultura com territórios geográficos e sociais. Esse deslocamento se reflete na perda de referências culturais, provocando no cidadão uma sensação de desenraizamento, não-pertencimento a uma coletividade que incide na fragmentação de sua identidade. Frente a este cenário, o autor reconhece nas próprias tecnologias comunicacionais a possibilidade de promoção de uma hibridação entre elementos de culturas midiáticas, eruditas e populares no estabelecimento de uma identidade multicultural, mutável e multicontextual. Chama de reterritorialização a “mestiçagem dos consumos engendrando diferenças e formas locais de enraizamento” (GARCÍA CANCLINI, 2006, p.134). Desta forma, García Canclini analisa a reconstrução identitária como um processo contínuo, baseado em trocas simbólicas estabelecidas em coprodução com uma coletividade. Neste panorama, este processo de reconstrução sofre influência da mídia massiva por meio de seus produtos midiáticos que estimulam o consumo de bens materiais e simbólicos, orientando hábitos e comportamentos do cidadão.


Sendo assim, a sociedade contemporânea, orientada por uma lógica mercantilista, permite ao indivíduo se afirmar como um cidadão por meio da prática do consumo desses bens materiais e simbólicos. A própria escolha pelo consumo de um bem define parte da identidade do cidadão enquanto consumidor. “Os hábitos e gostos dos consumidores condicionam sua capacidade de se converterem em cidadãos. O seu desempenho como cidadãos se constitui em relação aos referentes artísticos e comunicacionais, às informações e aos entretenimentos preferidos” (idem, p.157).


Como observado pelo autor, mesmo os produtos midiáticos relacionados ao entretenimento podem influenciar o desempenho de um cidadão a partir da relação que estabelecem entre si.


A análise do fenômeno da globalização sob esta óptica permite a observação do surgimento de uma prática cultural surgida pela influência da mídia. Neste cenário, receptores com o mesmo hábito de consumo podem criar pontos de contato que permitam estabelecer relações e criar vínculos socias, tendo em comum apenas a admiração por um produto midiático. Conforme foi argumentado no início deste artigo, este consumo cultural por apropriação pode ocorrer de forma desorganizada ou ritualizada. Na sua modalidade ritualizada, é pressuposto que exista uma articulação desses consumidores em torno da organização de um evento que permita um convívio ritualizado entre si. Quando se trata de uma comunicação mediada pela internet ou um encontro de colecionadores de produtos licenciados, todos se encontram em seus devidos papéis sociais, realizando trocas simbólicas e estabelecendo vínculos em torno de seus objetos de culto. Porém, quando se trata de ritos nos quais os fãs incorporam seus ídolos midiáticos, há um convívio mediado e ritualizado, envolvendo suspensão de identidades culturais como relações de parentesco ou mesmo das identidades ligadas ao mundo do trabalho.


Dentro do círculo do jogo, as leis e costumes da vida quotidiana perdem validade. Somos diferentes e fazemos coisas diferentes. Esta supressão temporária do mundo habitual é inteiramente manifesta no
mundo infantil, mas não é menos evidente nos grandes jogos rituais dos povos primitivos. (HUIZINGA, 1990, p.17).


O estudo “Tattoo” analisou o processo no qual o receptor se apropria de um produto midiático em diálogo com seu repertório cultural pessoal no estabelecimento de uma identidade cultural híbrida. A análise dos ritos performáticos de mímese da mídia não pressupõe este processo de hibridação, mas, sim, de culto e reafirmação do imaginário, haja visto que os participantes se deslocam de seus papéis sociais cotidianos para incorporar seus ídolos midiáticos.


Jogo e rito
Até o momento, foi discutida a relação entre receptor e produtos midiáticos por meio de sua apropriação cultural. Interessa ao artigo a discussão de uma apropriação ritualizada promovida por eventos como os encontros de cosplay e live action, nos quais os fãs de mangás, animes, quadrinhos e RPG incorporam seus personagens preferidos e representam cenas das obras das quais se apropriam. Mesmo esses eventos apresentam características diferentes entre si: enquanto o cosplay se baseia em disputas entre os participantes para avaliar qual deles se fantasia e representa melhor o personagem que mimetiza, configurando, então, uma espécie de exposição, no live action os jogadores participam de um jogo coletivo e representam personagens criados por eles mesmos, embora baseados nas mitologias de vampiro e outros seres sobrenaturais bastante divulgadas pela mídia. Embora a segunda modalidade se autodenomine como um jogo, adotarei o conceito de jogo de Johan Huizinga, a partir do qual, ambos eventos se encaixam nesta categoria, haja visto que são ritos lúdicos de representação que só funcionam em um contexto determinado, segundo regras próprias e cuja dinâmica exige a supressão temporária de realidade.


Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como “não-séria” e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a
rodearem-se de segredos e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes (idem, p. 16).


A definição de Huizinga não somente enumera as condições necessárias para a existência do jogo, como evidencia um aspecto que não debatido até este momento: que os jogadores, por meio do estabelecimento das regras do rito, impõem limites para a participação daqueles que a desconhecem. Como disse o autor “sublinham sua diferença em relação ao resto do mundo”, dinâmica significante que remete ao conceito de semiosfera de Yuri Lotman, que permite pensar que aqueles que participam do jogo conservam e cultuam suas diferenças em relação ao outro para evidenciar sua identidade cultural. Esta se estabelece na diferença. Esta reflexão ilumina a hipótese de que o sujeito que participa desses ritos de culto, o nerd, estigmatizado como diferente devido aos seus consumos culturais pouco usuais, pode, na verdade, cultivar esta diferença, ao promover ritos sobre os quais poucos sabem as regras e são convidados a participar. Apenas aqueles com conhecimentos e devoção suficientes aos produtos midiáticos podem fazer parte deste grupo.


As comunidades de jogadores geralmente tendem a tornar-se permanentes, mesmo depois de acabado o jogo. (…) Mas a sensação de estar “separadamente juntos”, numa situação excepcional, de partilhar algo
importante, afastando-se do resto do mundo e recusando as normas habituais, conserva sua magia para além da duração do jogo. O clube pertence ao jogo como o chapéu pertence à cabeça (idem, p. 15).


Esta perspectiva resignifica alguns “lugares comuns” que compõem o estigma do nerd. Seus incomuns hábitos de consumo cultural, que outrora lhes infligiam o estigma de outsider, agora atuam como seu diferencial, o conhecimento possuído por poucos que evidencia uma diferença qualificada, frequentemente associadas à erudição e bom humor. O nerd se reconhece como tal e quer ser exclusivo.

A afirmação de Huizinga também revela aspectos da relação de apropriação entre receptor e produto midiático. Ao afirmar que “o clube pertence ao jogo como o chapéu pertence à cabeça”, o autor está sugerindo que o jogo acaba, mas nunca deixa o jogador. Ele leva consigo lembranças até interpretações do jogo. Denota uma relação na qual o jogo (ou, no caso, o produto midiático) é que se apropria do jogador-receptor. Reflexão similar pode ser verificada na dissertação “Tattoo”, quando, ao analisar a apropriação de uma imagem midiática por meio de tatuagem, o autor considera que a imagem não se torna posse do tatuado, mas ele estará sempre ligado ao imaginário do produto da mídia. “O produto midiático nunca pertence àquele que o tatua, mas seu reverso é verdadeiro” (CARVALHO, 2010, p. 169). Estas situações revelam a relação de culto à mídia por parte do receptor.


Esta é uma hipótese fundamental deste artigo: o jogo de representação é uma manifestação ritualizada do culto à mídia. Como discutido anteriormente, a performance mimética deixa pouco ou nenhum espaço para a expressão do repertório cultural do receptor que o encena; trata-se de uma atividade ritualizada que reforça o imaginário dos produtos midiáticos mimetizados. Tal reflexão passa pelas definições de jogo, rito e culto. “A identificação platônica entre o jogo e o sagrado não desqualifica este último, reduzindo-o ao jogo, mas, pelo contrário, equivale a exaltar o primeiro, elevando-o às mais altas regiões do espírito” (HUIZINGA, 1990, p.23). Nem todo jogo é um rito, mas todo rito, a partir da lógica de Huizinga, pertence ao universo do lúdico, exigindo da imaginação e supressão da realidade, assim como do estabelecimento de um local, de um tempo destinado exclusivamente à atividade e de um conjunto de regras que estabeleça seus limites e sua dinâmica própria.


A partir desta reflexão é possível argumentar sobre o valor de culto das performances miméticas. Já foi debatido que o receptor da mídia que poderia ser classificado como nerd apresenta como características o consumo cultural de certos produtos midiáticos, geralmente associados a estilos narrativos ligados à imaginação e fantasia, como o scifi ou o “capa-e-espada”; este ator social pode ser reconhecido como alvo de estigma (por aqueles que não pertencem ou não compreendem sua paisagem cultural) ou como alguém que detém prestígio (entre aqueles que admiram os valores desta “cultura nerd”). Considerando que este sujeito é prestigiado por aqueles que possuem o mesmo hábito de consumo, ele pode utilizar parte significativa de seu tempo ocioso (ou de lazer) para o culto do objeto de seu consumo cultural. Quando consome o produto midiático, se sente satisfeito, quando demonstra conhecimento a seu respeito, é admirado; quando o mimetiza com verossimilhança, é exaltado entre seus pares. Esta é uma grande justificativa para a participação nesta espécie de jogo, tendo em vista que é uma atividade voluntária.


Seja como for, para o indivíduo adulto e responsável, o jogo é uma função que facilmente poderia ser dispensada, é algo supérfluo. Só se torna uma necessidade urgente na medida em que o prazer por ele provocado o transforma numa necessidade. É possível, em qualquer momento, adiar ou suspender o jogo. Jamais é imposto pela necessidade física ou pelo dever moral, e nunca constitui uma tarefa, sendo sempre praticado nas “horas de ócio”. Liga-se à noções de obrigação e dever apenas quando constitui uma função cultural reconhecida, como no culto e no ritual (idem, p. 10).


Em uma debate com a reflexão proposta por Huizinga, os jogos performáticos não são atividades remuneradas (exceção feita, eventualmente, aos seus organizadores profissionais), portanto ocupam o tempo ocioso do sujeito (o tempo em que não está engajado em uma atividade profissional) e conta com sua participação voluntária e espontânea. Não é ligado à noção de obrigação, mas pode representar para o fã do produto midiático seu momento de exaltação, no qual, por meio da mímese, se aproxima de seu ídolo. O sujeito se engaja neste jogo porque para ele é importante na constituição de sua própria identidade cultural.


Performance e Drama Social
Dentre suas características mais marcantes, a vida na sociedade contemporânea é reconhecida pela sensação urgente do esvaziamento do tempo. O sujeito contemporâneo, especialmente em cenários urbanos, dispende cada vez mais tempo para o exercício de sua profissão; ele ocupa este tempo com a resolução de tarefas e o cumprimento de obrigações. O tempo que lhe resta é chamado de tempo ocioso pois não precisa dedicálo a nenhuma forma de produção. Neste período, o cidadão dorme ou se mantém ativo; este é o momento no qual faz suas escolhas de consumo cultural, buscando formas de relaxar e se entreter. Ele pode ser dedicado aos estudos, ao lazer ou a práticas religiosas. Como visto, em diálogo com Garcia Canclini, esses consumos compõem sua identidade cultural. O jogo mimético performado pelos receptores encontra um espaço especial em seu imaginário, não somente como mero entretenimento, mas ocupando a esfera do sagrado (no estabelecimento de sua identidade cultural).


Huizinga argumenta que a função do jogo “pode de maneira geral ser definida pelos dois aspectos fundamentais que nele encontramos: uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa (idem, p. 17)”. Representar poderia significa mostrar, se exibir perante um público, como ocorre nos eventos de cosplay que premiam a melhor fantasia e a melhor performance mimética. Porém, pode assumir a função de representações sagradas ao promover entre seus participantes uma “realização simbólica”.


Os participantes do ritual estão certos de que o ato concretiza e efetua uma certa beatificação, faz surgir uma ordem de coisas mais elevada do que aquela em que habitualmente vivem. Mas tudo isto não impede que essa “realização pela representação” conserve, sob todos os aspectos, as características formais do jogo. É executada no interior deum espaço circunscrito sob a forma de festa, isto é, dentro de um espírito de alegria e liberdade. Em sua intenção é delimitado um universo próprio de valor temporário. Mas seus efeitos não cessam depois de acabado o jogo; seu esplendor continua sendo projetado sobre o mundo de todos os dias, influência benéfica que garante a segurança, a ordem e a prosperidade de todo o grupo até a próxima época dos rituais sagrados (idem, p. 17).


Esta citação revela o significado simbólico que um fã de filmes e desenhos pode atribuir à representação de seu ídolo midiático. Retomando Frazer, a similaridade com seu ídolo por meio da mímese pode lhe conferir realização pessoal. Um ponto passível de reflexão em um estudo mais aprofundado sobre essas práticas culturais se encontra na frase final da citação de Huizinga. Nela, o autor diz que o efeito do jogo se perpetua e garante “segurança, a ordem e a prosperidade de todo o grupo até a próxima época dos rituais sagrados”. Deslocando esta reflexão para o universo dos jogos de representação, é possível dizer que manteria os jogadores tranquilos e satisfeitos até que voltassem a realizar nova performance; desta forma, o jogo assumiria, de fato, uma nova função: de controle de crises no tecido social.


Embora tenha realizado um estudo bastante aprofundado sobre os jogos, a última sentença de Huizinga pareceu deslocada do corpo do texto, sendo tratada de forma superficial. Entretanto, tal tema foi profundamente estudado pelo antropólo cultural Victor Turner que, na década de 70, estudou a relação entre “communitas”, drama social e ritos de liminaridade na tribo Ndembu, na Zâmbia, desenvolvendo uma metodologia interpretativa bastante apropriada para a análise de ritos na estrutura social.

Segundo Turner, em sua obra O Processo Ritual, os communitas, indivíduos iguais, submetidos à autoridade de anciões ancestrais, tais como estrangeiros e outros outsiders, passavam por um processo ritual de liminaridade para que fossem integrados à sociedade. Este rito consistia em um processo de ruptura com a estrutura social, a partir do qual os communitas passavam a viver em situação de marginalidade (daí liminaridade: vivendo no limiar da estrutura social), sendo vítimas de ostracismo por parte dos membros estabelecidos da sociedade. Festejos sistematizados que compunham o calendário Ndembu permitiam aos communitas em seu estado liminar participar temporariamente da sociedade no papel simbólico de governantes e autoridades enquanto que os verdadeiros ocupantes dessas funções assumiam o papel de communitas.


Esses eventos ritualizavam os conflitos sociais da sociedade Ndembu, transmitindo aos communitas a sensação temporária de igualdade social e mesmo promovendo uma experiência de catarse, ao inverter simbolicamente os papéis sociais dos participantes. Essa experiência catártica diminuía a insatisfação dos communitas ao permitir que representassem sua ascensão social (e mesmo que simbolicamente “se
vingassem” das autoridades opressoras), acalmando seus ânimos e assim, ritualmente, reforçando a estrutura social vigente. Este é o processo que Turner chamou de Drama Social, no qual uma anti-estrutura temporária reforça uma estrutura de poder por meio de sua negação sistematizada. Não é difícil notar as semelhanças entre a abordagem do Drama Social de Turner e da função ritual do jogo para garantir “a segurança, a ordem e a prosperidade” como citou Huizinga. O próprio autor de Homo Ludens retrata a relação entre ritual, representação e drama:


O ritual é um dromedon, isto é, uma coisa que é feita, uma ação. A matéria desta ação é um drama, isto é, uma vez mais, um ato, uma ação representada num palco. Esta ação pode revestir a forma de um espetáculo ou uma competição. O rito, ou “ato ritual”, representa um acontecimento cósmico, um evento dentro do processo natural. Contudo, a palavra “representa” não exprime o sentido exato da ação (…); porque aqui “representação” é realmente identificação, a repetição mística ou a representação do acontecimento. O ritual produz um efeito que, mais do que figurativamente mostrado, é realmente reproduzido na ação. Portanto, a função do rito está longe de ser simplesmente imitativa, leva a uma verdadeira participação no próprio ato sagrado (idem, p. 18).

Após a análise das abordagens é perceptível que ambas asseguram um local simbólico para as performances miméticas dos produtos midiáticos. Essas não se limitariam a meras imitações dos personagens, mas à própria vivência da experiência do personagem no ato de mimetizá-lo. Esta comparação evidencia a adequação desta metodologia de pesquisa para o estudo de ritos na contemporaneidade. Mímese como alteridade, como propõe o livro homônimo do antropólogo Michael Taussig.


Considerações finais: A Vingança dos Nerds
A Virada Cultural é um evento que acontece em São Paulo desde 2005, promovendo a apresentação gratuita de músicos, dançarinos e artistas pelas ruas do Centro Histórico. As edições de 2010 e 2011 contaram com a participação do que foi chamado de “Dimensão Nerd” que consistiu em desfiles de grupos de fãs de diversos produtos midiáticos pelas ruas do Centro. Dentre eles se destacavam os fãs de Star Trek, Star Wars, Senhor dos Anéis e jogadores de RPG fantasiados de vampiros e lobisomens.


Em 2011, no seminário “Science Fiction”, ocorrido na Faculdade Cásper Líbero, o líder da comunidade oficial dos fãs de Star Wars no Brasil contou a experiência emocionante que teve quando, vestido como o arquivilão da série, Lorde Darth Vader, e seguido por seus soldados, contornou o Teatro Municipal e desfilou para o Viaduto do Chá enquanto era ovacionado por centenas de cidadãos presentes na região. Orgulhoso, contou que nunca se sentiu tão bem em sua vida.


Diferentemente das tradicionais manifestações de cosplays e live action que exigem um espaço determinado e horário limitado para sua prática sem que interfira no uso cotidiano de um espaço público, circunscrevendo, assim a participação apenas aos iniciados no jogo, o evento da Virada Cultural permite, há 2 anos, que, mimetizando seus ídolos midiáticos, os chamados nerds possam circular no espaço público, vestidos como se sentem bem e sendo bem recebidos pelo outro, aquele que, muitas vezes, não o respeita em seu cotidiano quando não veste uma máscara. A organização do evento
permitiu a pessoas estigmatizadas e, concomitantemente, a seus ídolos midiáticos, exercer sua cidadania do alto de sua diversidade cultural em uma grande celebração da alteridade.


Ao menos que se trate apenas de outro Drama Social.

REFERÊNCIAS
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*Publicado originalmente em CARVALHO, E. . A vingança dos nerds: ritos performáticos como dinâmica social de culto a produtos midiáticos. In: BARROS, L M. (Org.). Discursos midiáticos: representações e apropriações culturais. 1ed.São Bernardo do Campo: UMESP, 2011, v. 1, p. 229-244.