Brasil 1962. O mundo todo conhecia o país que acabava de ser bi-campeão do mundo no futebol, pelas mulheres, pelas florestas e pelo carnaval, e é verdade que a sétima arte teve um grande papel em mostrar tudo isso para o mundo, afinal Carmen Miranda era tão brasileira quanto a Amazônia, mas, mesmo assim, ainda havia algo faltando para nós. 

O cinema nacional não tem o reconhecimento que merece, tanto do próprio povo quanto da crítica. algumas das principais obras do cinema mundial foram produzidas no Brasil; filmes como; “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Cidade de Deus”, “Rio 40⁰” e “Terra em Transe” são frequentemente citados entre as obras que mais influenciaram grandes diretores de Hollywood. Mas, e se eu te disser que existe um filme brasileiro que ganhou a tão cobiçada “Palme d’Or” de Cannes?

O prêmio que foi obsessão dos diretores brasileiros como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Kleber Mendonça foi conquistado apenas uma vez pelo Brasil, com “O Pagador de Promessas” de Anselmo Duarte. Antes de tudo é importante situar o prêmio de Cannes no mundo do cinema: uma competição totalmente diferente de seu primo mais conhecido, o Oscar, voltado à premiação artística e autoral, onde filmes de todos os países chegam em pé de igualdade para competir. 

No início da década de 1960 no Brasil, o movimento do Cinema Novo ainda engatinhava no país, que tampouco era reconhecido mundialmente, e as chanchadas dominavam o cinema nacional. Filmes com roteiros mais leves e humor fácil eram as principais atrações. Anselmo Duarte era uma das principais figuras nas telas durante esse período, até que o ator decidiu se aventurar por trás dos holofotes, passando a escrever e dirigir filmes. 

Envolto no ambiente político e cultural que construiu o manifesto “Estética da Fome” e criou o Cinema Novo, Anselmo decidiu adaptar a peça “O Pagador de Promessas” para o cinema. A peça conta a história de um homem do interior do país que carrega uma cruz até a igreja de Santa Bárbara, mas é impedido de entrar pelo padre local.

O filme teve, desde o início, o objetivo de ganhar o prêmio de Cannes, e enfrentou diversos problemas na captação de recursos para seu financiamento. Anselmo fez um empréstimo bancário para completar o valor necessário para as filmagens. E o fato do filme usar apenas luz natural e não contar com grandes desafios de produção se alinham perfeitamente à falta de recursos.

A sociedade da época criticou muito o filme por considerá-lo um enfrentamento à Igreja Católica e ao conservadorismo da época, que hoje podemos chamar de preconceito e racismo, pois o personagem enfrenta até mesmo a polícia e os figurões locais pela sua crença.

O simbolismo e sincretismo religioso, alinhados àexcelente direção de fotografia do filme, conseguiu retratar o Brasil e suas contradições e mostraram ao mundo todo essa face profunda do país que cansou de ser visto apenas como a terra das palmeiras e do carnaval.

O filme atingiu seu objetivo e foi o vencedor da Palme d’Or de 1962, único filme brasileiro a atingir esse feito. a celebração entre a classe cinematográfica foi equivalente ao título da Copa do mundo desse mesmo ano; a obra chegou a concorrer no Oscar do ano seguinte à categoria de melhor filme estrangeiro. Todo esse prestígio acabou por moldar os anos seguintes do Cinema Novo e do cinema brasileiro até os dias de hoje, ainda que uma certa figura onipotente da cena nacional tanto odeie esse filme… Mas isso é assunto para outra resenha.