O Halloween acabou. Com isso, nos encontramos diante dos momentos finais do que tem sido, incontestavelmente, um ano de terror. Embora não seja possível derrotar o COVID-19 com qualquer facão ou arma de fogo, existe uma trupe específica de heroínas que vem lidando há muito tempo com situações tão perigosas quanto, mas com vilões bem mais tangíveis.
Cunhado pela professora Carol J. Clover em seu livro Homens, Mulheres e Motosserras (1987), o conceito da “garota final”, popularmente conhecida como final girl, se refere à última garota ainda em pé no final de um banho de sangue, aquela que escapa e (na maioria das vezes) vence seu suposto assassino.
Na primeira era do cinema de horror, as mulheres eram retratadas quase exclusivamente como vítimas; donzelas em perigo destinadas a uma morte trágica, a menos que fossem salvas no último minuto por um homem. Eram tidas como frágeis, vulneráveis e extremamente suscetíveis. Em Nosferatu (1922), por exemplo, a protagonista Ellen não só perdurou por todo o longa mas também usou da sua astúcia e pureza para atrair Drácula ao seu fim. Ainda assim, Ellen morre no final do filme, se sacrificando para salvar o resto do mundo. Foi preciso décadas para que as mulheres que lutavam contra esses monstros ao menos sobrevivessem para contar a história.
O estereótipo da final girl é talvez o mais conhecido do gênero de terror, tomando conta das telas desde os anos 70, sendo tão essencial para a trama quanto o próprio vilão. Essa personagem pode vir em muitas encarnações diferentes, mas possui traços extremamente característicos que a definem como a finalista.
A doce Laurie, do slasher clássico de dia das bruxas, Halloween (1978), é o suprassumo desse conceito: Inteligente, vigilante e um tanto antissocial. Não bebe ou usa drogas, fazendo com que ela esteja bem lúcida e pronta para enfrentar o perigo. Ainda por cima é a típica estrela virginal; não liga nem um pouco para sexo, aquilo que acaba condenando suas amigas. E, mesmo que não tenha pensado duas vezes antes de enfiar um cabide nos olhos de Michael Myers, Laurie ainda recobra alguns aspectos da protagonista de Nosferatu, sendo usada como símbolo da pureza na luta contra o mal.
Outro aspecto que liga as duas garotas e as prende em um ciclo perigoso do estereótipo, é a feminilidade tida como sinônimo de vulnerabilidade. A expectativa da vitimização como um fardo singularmente feminino expõe tudo a um ângulo menos empático. O público não se identifica com homens num perigo semelhante. Um homem virginal encolhido em um armário, chorando, tentando se defender com um cabide, não era considerado alguém por quem o público torceria.
Nesse ponto, os longas com serial killers e criaturas sobrenaturais projetavam nas personagens femininas muitos clichês perpetuados pela indústria, não foi até o final dos anos 90 que as coisas começariam a mudar.
Em Pânico (1996), Sydney Prescott se prova como uma espécie diferente de final girl, subvertendo a fórmula: A personagem exerce total controle sobre o que lhe acontece. Conhecer as “regras” do estereótipo da finalista permite com que ela finalmente as quebre. Mais importante que isso, Sydney ajudou a inaugurar uma nova era do horror, onde a heroína não apenas sobrevive, mas prospera.
Essa herança se faz clara em filmes mais recentes como A Morte Te Dá Parabéns (2017) e Casamento Sangrento (2019), onde encontramos uma final girl ágil e esperta que definitivamente não foge da luta, e sim corre em sua direção. Além disso, a finalista moderna é fortalecida pela sua feminilidade, contrariando o histórico do gênero e transformando em arma o que antes era tido como empecilho.
Até mesmo em Midsommar (2019), Dani somente aparenta ser uma final girl por excelência; solitária, observadora e inocente. Quando, ao final do filme, ela não é apenas a última de pé, como também aquela que finalmente retomou o controle que era repetidamente tirado dela pelo namorado abusivo. Usando disso para puni-lo e no fim, tornar-se ela mesma uma assassina.
O pior é que, por mais que o estereótipo tenha evoluído muito ao longo dos anos, ele ainda perpetua uma característica extremamente problemática: Mesmo as final girls mais subversivas são esmagadoramente brancas. Filmes revolucionários do terror como Midsommar e Pânico desafiam brilhantemente as estruturas tradicionais mas ainda não garantem a sobrevivência de personagens negros. Enquanto a audiência se distrai aterrorizada pela garota branca, as mortes de personagens negros são tidas apenas como “parte do show”.
Mulheres negras não eram tidas pela indústria como figuras com quem o público se identificaria, o que expõe o quão historicamente excludente o gênero de terror é para minorias, principalmente para mulheres de cor.
“As razões por trás da ausência de final girls negras em filmes de terror são bastante previsíveis. Nos primeiros anos do gênero, os principais cineastas e agentes de elenco eram predominantemente brancos e homens, e não achavam que um filme liderado por mulheres negras era necessário, lucrativo, nem relacionável ao público-alvo branco.” Conta a escritora Tai Gooden.
“Mulheres e meninas negras não eram vistas como pessoas vulneráveis com as quais um público poderia se identificar, e identificar como vítimas de violência, porque mal éramos vistas como pessoas, muito menos como pessoas valiosas.”
A recente ascensão do “horror social” começou a desafiar esse aspecto do estereótipo. O último filme de Jordan Peele, Nós (2019), subverte e reinventa o ponto de vista esbranquiçado do horror com o protagonismo de Adelaide, a rara finalista negra. A personagem de Lupita Nyong’o não só tem parte na criação do horror que enfrenta, como mostra a todo momento o controle que a protagonista tem sobre si mesma e os acontecimentos da narrativa. Adelaide também contesta a inocência da final girl comum, sendo ao mesmo tempo heroína e vilã do filme, fazendo o espectador não só temer por ela mas também temê-la.
Outra obra do chamado “pós-terror” que traz uma lupa às minorias é o longa Assassination Nation (2018), dirigido por Sam Levinson. Nele encontramos um grupo diverso de finalistas; dentre elas a modelo transgênero Hari Neff e a cantora negra Abra. As garotas não só sobrevivem, como viram o jogo violentamente, derrubando todo e qualquer um dos homens que as atacassem.
As coisas estão mudando, mesmo que lentamente. A evolução do estereótipo da final girl é o retrato disso. E com o movimento do “horror social” ganhando cada vez mais força, é essencial ressaltar como esse progresso ainda é uma escolha de mercado por parte dos estúdios. É de extrema importância que tenhamos mulheres atrás das câmeras, tanto quanto na frente delas, fazendo parte das equipes de produção num geral. É impossível construir personagens femininas reais e cativantes sem ter mulheres reais como parte do núcleo de criação da história.
Você pode conferir um pouco mais sobre o assunto no vídeo ensaio abaixo:
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