Se desprenda da lógica e entre no surrealismo. Me refiro ao paraíso poético da imaginação, onde os sonhos e o inconsciente tomam a forma que desejarem e mais importante: tudo é possível. Fortemente influenciado pelas teorias psicanalíticas de Freud, o movimento se desdobra a partir de 1924, enquanto vários nomes como Dalí, Miró e Magritte ganham relevância. Por meio de formas improváveis e desprovidas de razão, os artistas apropriavam-se do supra-real para criticar os padrões e valores impostos pela sociedade burguesa.

No cinema, o curta ‘Um Cão Andaluz’ (1929) estreia o impossível na telona. Dirigido por Salvador Dalí e Luis Buñuel, o filme foi massacrado pelas cenas fortes e de difícil entendimento que foram exibidas. Buñuel continuou a aplicar tal arte subversiva na telona: ‘O Anjo Exterminador’ (1962) e ‘O Discreto Charme da Burguesia’ (1972) apropriam-se do onírico e de eventos improváveis para explorar a verdadeira natureza humana, escondida por trás das “máscaras sociais” que os impedem de questionar a própria realidade. A obra de Buñuel, como principal expoente do surrealismo no cinema, foi também responsável, junto à do italiano Federico Fellini, por inspirar o diretor, roteirista, escritor, ator, poeta, produtor, músico, compositor, autor de quadrinhos, tarólogo e guru espiritual, Alejandro Jodorowsky.

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Dono do melhor filme do mundo que nunca foi feito (assista o documentário Jodorowsky’s Dune), o diretor não demorou para alcançar a visibilidade internacional, impulsionada principalmente pelos clássicos ‘El Topo’ (1970) e ‘A Montanha Sagrada’ (1973), além dos trabalhos para os quadrinhos junto ao ilustrador francês Moebius, como “Os Olhos do Gato” e a trilogia “Incal”.

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Pouco se fala de surrealismo nos dias atuais. As produções estão cada vez mais literais, amarradas e objetivas, dando pouco espaço para o devaneio, imaginário e objetos passíveis de interpretações abertas. Para a alegria dos sonhadores, Jodorowsky deu continuidade à sua obra autobiográfica. Iniciada pela ‘Dança da Realidade’ (2013), filme que conta de maneira lírica a infância de Alejandro, envolta pelos valores familiares tradicionais e opressão paterna. Em ‘Poesia sem Fim’, o filho do diretor interpreta-o durante seu descobrimento como poeta, quando vai para Santiago viver em uma casa de artistas. As escolhas para representar, simbolizar e realizar a vida do autor são magníficas: as emoções não são negligenciadas quando contrapostas com delírios humorísticos e vice-versa; a representação da mãe que canta ao invés de falar é um belo símbolo, assim como a resolução do conflito com o pai. Em diversos momentos há a intervenção do próprio Jodorowsky idoso, este que fala diretamente suas indignações, anseios e sentimentos, podendo ser consideradas as partes com as mais objetivas reflexões que o longa provoca. Outros eventos importantes na vida do diretor também são representados, como o primeiro contato com o tarô, drogas espirituais e o momento em que Pinochet assumiu o governo chileno.

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Diversos artistas dedicam muito de suas influências à Jodorowsky. Um deles é David Lynch, que uma vez disse não entender como as pessoas negligenciam a “arte desprovida de sentido” quando a própria vida é desprovida desse sentido. Talvez nenhuma outra frase resuma tão bem o poder do surrealismo como narrativa.

Crítico mirim, desenhista amador, escritor júnior e futuro diretor (se tudo der certo).