Durante toda a minha vida, ou pelo menos desde quando eu me conheço por gente, eu procurei na arte referências daquilo que eu estava passando e, consequentemente, tijolos que foram construindo minha personalidade e ainda constroem. Seja numa fase muito empoderada ouvindo Lemonade da Beyoncé, numa fase anarquistinha lendo Clube da Luta ou até tentando me recuperar amorosamente ao som de The Cure, eu sempre fui a materialização da frase “a vida imita a arte”.

Eu também costumo pensar em mim como um clichê dos anos 1990: a deslocada, que veste preto, jaqueta militar e coturno, com humor ácido e uma cara de tédio constante, não sei se foi porque eu fui doutrinada pela Família Addams ou só porque foi o desenvolvimento natural das coisas, mas eu me identificava muito com personagens como Mathilda, de O Profissional e Lindsay de Freaks & Geeks, por exemplo. E foi seguindo esse padrão que eu finalmente me encontrei com a estrela da minha animação preferida de todos os tempos: Daria, que hoje faz 20 anos.

referencia
Prova definitiva de que tudo o que nós conhecemos como “cool girl” foi inventado nos anos 1990.

Essa garota carismática apareceu pela primeira vez em um episódio de Beavis and Butthead, animação que você deve conhecer por seus protagonistas cheios de acne, pervertidos e que faziam piadas no mínimo irreverentes. Porém, mais contemporaneamente, caso você não reconheça os dois pela sua animação icônica na MTV, você deve tê-los visto como referência visual na página Galãs Feios do Facebook, da qual sou fiel devota.

galas feiosd

Daria surgiu numa época turbulenta na MTV, na qual as mulheres eram muito pouco representadas ou, se eram representadas, era de alguma forma extremamente sexualizada e na qual todas as gravadoras queriam encaixar a qualquer custo o máximo de músicas que pudessem na programação do canal. A MTV chegou até a fazer uma série de super-heroínas que usavam roupas minúsculas e tinham poderes engraçadinhos (como uma menina que espirrava toda vez que alguém mentia), que foi um fracasso e durou apenas cinco episódios. As outras mulheres também só apareciam como personagens de reality shows.

Foi então que, numa jogada corajosa, os criadores de Daria resolveram seguir a linha das animações que estavam sendo exibidas na Europa (que tinham uma pegada mais alinhada às questões de direitos civis) e se afastaram daquilo que estava nas televisões americanas. O público gerou uma empatia instantânea pela personagem e seus amigos e fez com que o público feminino se encontrasse no canal, algo que não acontecia quando Beavis and Butthead eram o centro das atenções do canal. Daria foi a animação de maior sucesso da história da MTV, durando cinco temporadas, de 1997 a 2002.

O último episódio contou com um discurso da personagem em sua formatura que dizia “Seja fiel àquilo que você acredita, até que a experiência prove que você estava errado. Lembre-se, quando o Imperador está nú, o Imperador ESTÁ nú. A verdade e uma mentira não são meio que a mesma coisa.”, palavras que parecem proféticas aos tempos de hoje, com Donald Trump usando “verdades selecionadas” em seu sistema de governo. Isso mostra que, mesmo aparecendo 20 anos atrás, Daria ainda é uma animação extremamente atual. O canal College Humor chegou até a fazer um trailer de uma versão live-action fictícia da animação, estrelando Aubrey Plaza (dona de mais um dos tijolinhos da minha personalidade).

O conceito de Daria era a antítese de tudo o que era mainstream na sua época, o que não faz sentido hoje, já que existem tantas e tão diversas subculturas, que não dá para ser uma negação de todas elas ou definir qual é mais popular do que outra (vide que há hipsters para onde quer que você olhe).  Daria se imortalizou como não apenas um símbolo pop da contracultura, mas também como um ícone feminista, o que é muito irônico, porque apesar de toda sua estrutura de empoderamento feminino, ela foi criada por uma equipe composta majoritariamente por homens e não tem como algo pertencente à contracultura fazer tanto sucesso ou até estar intrinsicamente ligado aos interesses mercadológicos de uma multinacional como a MTV.

Toda essa questão me lembra muito os dias de hoje, tempos estes em que as coisas necessariamente precisam portar uma Crítica Social Foda™ e passar uma mensagem muito maior do que a original.

Videoclipe da música nova, Chained to the Rythm,da Katy Perry, onde todos estão num parque de diversões muito (isso mesmo que você está pensando) Black Mirror.

Se você estava por dentro do que aconteceu na última edição do New York Fashion Week, você pôde ver que vários designers (de marcas multimilionárias de luxo e pouquíssimo acessíveis) resolveram colocar, além das mais diversas cores e texturas, uma pitada de ativismo em suas coleções, como foi o caso de Marchesa, Jonathan Simkhai, Tome, Jeremy Scott, dentre vários (que você pode ver aqui, na lista da Forbes de designers que fizeram coleções “socialmente engajadas” e aqui, no acervo da Fashion Forward, as coleções dessa edição do NYFW).

Antes de qualquer coisa, eu quero deixar claro como o Sol que eu sou completamente a favor da manifestação das inquietações sociais em suas mais diversas formas, ainda mais com celebridades e figuras públicas utilizando suas formas de expressão para materializá-las, ok? Mas, mesmo assim, eu acredito que, como todo mundo tem agora essa “obrigação” de manifestar uma mensagem impactante, elas geram discussões muito rasas ou até mesmo nenhuma discussão, terminando sua glória no máximo com vários compartilhamentos no Facebook por uma ou duas semanas, até finalmente ser esquecida ou, em casos extremos, ser revista saudosamente depois de dois anos em alguma página como Quebrando o Tabú. Isso não é necessariamente ruim, porque a democratização da informação é, sim, uma das pautas mais importantes da humanidade (e está se concretizando graças à expansão do uso da magnífica Internet), mas não é suficiente.

Cabe ao nosso bom-senso não deixar que questões sociais importantes não morram apenas como temática de um álbum maravilhoso da Beyoncé ou nas mãos de marcas que se apropriam de qualquer manifestação de direitos civis para seus interesses comerciais, mas não necessariamente promovem alguma alteração na ordem social.

Não conseguiu ser VJ da MTV.