Se engana quem pensa que universos fantásticos não podem ser irreverentes, cômicos ou até mesmo irônicos (e refletir assim todas as injustiças do “mundo real”).

Um Morte (sim com “M” maiúsculo e no masculino, que tem uma filha adotiva e uma fazenda) que “não é mau, só terrivelmente, TERRIVELMENTE bom em seu trabalho” ou mesmo um mundo em que “não existem pessoas boas e ruins, só pessoas ruins que acabaram de lados opostos”.

Ou até mesmo um mundo em que “a caneta é, sim, mais forte do que a espada (se ela for bem afiada e a espada bem curta)”.

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Essa visão estranha, inteligente e muito, muito irônica é o traço característico do genial Terry Pratchett, falecido no dia 12 de março. Famoso por sua série de fantasia Discworld, um mundo bem parecido com aquele de Senhor dos Anéis ou Nárnia, porém onde as coisas não ocorrem sempre da maneira mais inteligente ou mesmo esperada.

Se você precisa de números e autoridades para se situar sobre as coisas aqui vão os dados do autor logo de cara: foi o autor britânico que mais vendeu livros até uma certa senhora começar uma certa saga sobre um certo bruxo. Ele também foi nomeado cavaleiro em 2009 pelo serviço prestado à literatura. E sim, ele tem um brasão.

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Nascido em 1948 na pequena cidade de Beaconsfield, Pratchett já não sentia que o mundo era um lugar confortável: em sua biografia credita a instituição responsável por sua educação como sendo a Biblioteca Pública de Beaconsfield.

Trabalhou durante uma boa parte de sua vida como jornalista e foi por causa dessa profissão que teve seu primeiro livro publicado: durante uma entrevista com o dono de uma pequena editora, comentou que havia escrito um livro e isto despertou interesse. Assim foi publicado seu primeiro romance infantil, The Carpet People, com ilustrações próprias, em 1971.

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Seus romances seguintes ecoavam uma das grandes paixões do autor: ficção científica. Foram eles Strata (1976) e The Dark Side of The Sun (1981).

Aqui vale uma reflexão do próprio autor acerca de consumir material da mesma natureza do que se cria (que é MUITO válido para quem faz propaganda): “Se você vai escrever fantasia, pare de ler fantasia. Você já deve ter lidos muito disso, então leia outras coisas. Caso contrário você só vai reciclar ideias ou mexê-las um pouquinho de lugar”.

Em 1983 Pratchett lançou o livro que daria início ao mundo de Discworld: A Cor da Magia. As aventuras do mago Rincewind, que mais parece um charlatão em busca de um meio para sobreviver, frente ao fim de um mundo que na verdade é plano e redondo, apoiado no lombo de 4 elefantes, que se equilibram no casco de uma gigantesca tartaruga que vaga pelo cosmos.

Parece estranho? Espere até conhecer os absolutamente rudes e egocêntricos magos, que se preocupam mais com a tradição e a melhor condução dos rituais cerimoniais da própria academia do que com magia de verdade.

Ou também de garotos treinados para serem ladrões mas se descobrem faraós, donos de enormes pirâmides e ainda maiores burocracias.

Deste livro em diante, Pratchett publicou quase que dois livros por ano, desacelerando somente na década de 2000 e 2010. O 40º livro da série terminou de ser escrito no final do ano passado e será lançado postumamente ainda este ano.

Aqui no Brasil, foram lançados até hoje apenas 13 livros, inicialmente pela editora Conrad e hoje pela Bertrand.

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Uma de suas obras mais conhecidas é também uma das mais interessantes: Belas Maldições, uma parceria com o cultuado Neil Gaiman.

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O livro conta a história da chegada do anticristo na terra e de toda a comoção causada, tanto aqui quanto no céu e no inferno. Tinha tudo para ser uma história trágica ou de terror, mas um único acontecimento inesperado muda todo o rumo do mundo: o bebê maldito é trocado na maternidade, sendo adotado por um pacato casal do interior inglês.

Ao chegar a determinada idade, o destino do Anticristo é selado conforme sua inclinação ao bem ou ao mal, e sua companhia animal deve vir ao seu encontro adotando características compatíveis com o lado escolhido. Com toda a confusão, o animal aparece como um divertido vira-lata apelidado carinhosamente de “Cão”.

Há também o grande demônio Aziraphale, que diante de seus iguais, que se gabavam de terem atormentado durante anos padres e freiras que acabaram cometendo pecados, se mostra em sintonia com os novos tempos e de maldade consegue fazer uma das principais rodovias de Londres ficarem congestionadas em horário de rush ou derrubar centrais telefônicas em momentos de bastante uso (“Vocês não tem ideia dos pensamentos maléficos que nasceram das pessoas envolvidas”, diz ele).

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Pratchett foi diagnosticado com Mal de Alzheimer em 2007, fato que o deixou completamente arrasado e, pior ainda, inconformado com o fato de não poder acabar com a própria vida mesmo não tendo mais condição de viver com a qualidade esperada. Foi, inclusive, apresentador de um documentário condenando a proibição em muitos países da eutanásia, a escolha voluntária de se tirar a própria vida quando as condições para vivê-la não são mais as ideais.

Conhecido em eventos e convenções ao redor do mundo como um “velho elfo de chapéu”, seu amigo de longa data Neil Gaiman tem uma opinião um tanto diferente “O que move Terry é a raiva. Raiva de tudo que ele acha injusto no mundo”.

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Foi com essa raiva que um dos mais ricos e divertidos universos da literatura foi criado. Para terminar, algumas frases que destilam essa raiva, junto com sabedoria, ironia, humor e muita, muita inteligência.

“É sempre útil ter inimigos que estão prontos para morrer por suas causas. Assim temos o mesmo objetivo”

“Dê a um homem fogo e ele se aquecerá pelo resto da noite. Ate-o fogo e ele se aquecerá pelo resto da vida”

“Educação é como uma DST aparente: você se torna inapropriado para vários trabalhos e sente uma vontade terrível de passá-la adiante.”

E, para terminar essa homenagem, fica talvez sua frase mais relevante: “Só serei um entusiasta do pensar fora da caixa quando tiver evidências de que há algum pensar dentro dela”.

Minha barba. Minha vida.