Muito já se falou e continua se falando sobre o estimulante diálogo entre o Teatro e o Cinema. Os corpos presenciais dos atores em cena, em sintonia com a imagem audiovisual acabam por se complementarem e, até mesmo, se redimensionarem. Conclusão: ambas as linguagens saem ganhando neste poderoso e impactante embate.
Para se ter uma dimensão deste fenômeno, basta atentarmos para a programação da segunda edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MIT-SP, que se encerrou dia 15 de Março, apresentando vários espetáculos comprometidos com pesquisas cênicas que abordaram o binômio Teatro-Cinema. Antonio Araújo, um dos curadores da Mostra, já afirmou que este diálogo é atravessado por tensões e embates, quase sempre profícuos; a relação teatro-cinema dá origem a territórios híbridos ou povoados por confluências e dissonâncias, capazes de alterar as percepções do visível e ampliar os limites de ambas as artes.

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Um exemplo que ilustra o perfeito casamento teatro-cinema é a versão do clássico “Senhorita Julia” de Strindberg, com a companhia Schaubuhne de Berlim, assinada pela diretora britânica Katie Mitchell, considerada pela crítica especializada um ícone do teatro inglês desde o fim da década de 1990 e uma das pioneiras a implementar o cinema feito ao vivo em montagens teatrais. O que se viu no palco do SESC Pinheiros, não deixa dúvida de sua ousadia e criatividade: câmeras fazem parte das cenas, são como que personagens da narrativa e traduzem a visão intimista do espetáculo. As cenas são desnudadas em seus mínimos detalhes e projetadas em uma grande tela no centro da parte superior do espaço cênico. A contra regragem da peça é feita ao vivo, o mesmo acontecendo com a sonoplastia e a trilha sonora executadas aos olhos dos espectadores, criando camadas e mais camadas de pura metalinguagem. Vemos simultaneamente a cena teatral e a cena fílmica que, analogicamente, nos transporta ao poético universo cinematográfico de Ingmar Bergman e Andrey Tarkóvski.

A criação de Katie Mitchell dialoga com o trabalho da diretora brasileira Christiane Jatahy que comparece nesta edição do MIT-SP com dois espetáculos: “E se elas fossem para Moscou” e “Julia”, este último também é uma adaptação do texto “Senhorita Julia” de Strindberg. Diferente da diretora inglesa, Jatahy apresenta uma concepção cenográfica que é, ao mesmo tempo cinematográfica e teatral. Ao unir palco e tela, cria uma montagem que se traduz num duplo, onde cinema e teatro caminham juntos, sendo muito difícil estabelecer onde começa um e acaba o outro. Cenas gravadas ao vivo se mesclam com cenas pré-gravadas: vemos no palco a mesa de edição, o câmera, os técnicos, a iluminação e os próprios atores; o espectador se percebe como que um voyeur passeando pela linguagem do cinema em construção dialógica com o teatro.

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Em “E se elas fossem para Moscou”, uma livre adaptação da peça “As três irmãs” de Tchekhov, Christiane Jatahy é mais radical ainda: filma a peça encenada por seus atores com a presença do público e, ao mesmo tempo, edita e projeta as cenas produzidas ao vivo numa tela de cinema. Assim temos dois trabalhos a serem apreciados e cabe ao público escolher: assistir a peça teatral ou assistir ao filme (da peça teatral), ou ambos. A diretora esclarece: “O que mais me interessa é colocar ao espectador uma possibilidade de criação muito maior sobre o que está vendo, porque dá escolha a ele. Fui aproximando o teatro e o cinema, agora eu os afasto e crio uma terceira zona. É nesse outro lugar que é possível oferecer algo diferente.”

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Estamos diante de dois criadores que tentam nos tirar do lugar comum, combatendo nossa miopia e nossa percepção anestesiada pelo cotidiano repetitivo: estamos diante de experiências teatrais que visam desestabilizar o pensamento e a postura crítica dos espectadores: um ato de coragem e amor.

Nossa conversa continua.

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João Carlos Gonçalves (Joca)

Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.

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