Quando a intenção é quebrar as barreiras que separam as artes Teatro x Cinema x Dança x Artes Plásticas x Música, como não lembrar a figura emblemática do canadense Robert Lepage, um dos mais criativos encenadores da atualidade. Não é gratuita, portanto, sua figura ser comparada a ninguém menos que Federico Fellini, dada a sua habilidade em criar ilusionismos visuais a partir do casamento de linguagens aparentemente opostas, em se tratando de alta e baixa cultura. Em seu trabalho o circo pode se transformar em ópera.

Meu primeiro contato com a obra de Lepage foi em 2001, como espectador da peça “O Lado Oculto da Lua” que, logo em seguida, deu origem ao filme homônimo dirigido e interpretado pelo próprio Robert Lepage.

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Ainda guardo na memória o arrebatamento de presenciar um “visor” de uma máquina de lavar se transformar em janela de uma cápsula espacial, que se transformava em uma máquina de tomografia… que se transformava em uma lua: a genial alegoria do círculo… dos ciclos. Imagens oníricas que estão a serviço de uma poética narrativa que trata da competição entre dois irmãos, partindo, estranhamente, de uma viagem espacial a lua e se transmutando em uma poderosa metáfora sobre o narcisismo contemporâneo. Uma bela passagem do texto nos convida à reflexão:

“Alexei Leonov não era um astronauta, ele era um cosmonauta. Não, não é a mesma coisa mesmo. Porque um cosmonauta é geralmente russo e um astronauta é geralmente americano. Mas as palavras não significam a mesma coisa. A etimologia da palavra astronauta é: navegador em busca de estrelas, e cosmonauta é: navegador em busca do cosmos. Não, não é a mesma coisa mesmo. Bem, porque cosmos é uma palavra muito, muito precisa. É o contrário de caos. Aliás, os gregos antigos usavam essa palavra para designar beleza, porque, para eles, a estrutura harmoniosa do universo era sinônimo de beleza.”

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“Os Sete Afluentes do Rio Ota”, outro espetáculo memorável de Lepage foi apresentado no Brasil em 2002: Monique Gardenberg nos presenteou com uma excelente versão do espetáculo, realizado com o aval de Lepage. Em torno do palco, uma moldura de 2,20m de altura por 7 m de largura, em que são projetadas imagens, sugere ao espectador o que podemos chamar de “cinema vivo”: neste retângulo multifacetado se transformava numa casa japonesa, em vitrines do bairro da luz vermelha em Amsterdam, num campo de concentração nazista, em estúdio de gravação… narrando fatos históricos que marcaram o século 20.

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A tetralogia intitulada “Jogo de Cartas”, o novo e audacioso projeto de Robert Lepage, poderá ser apreciado parcialmente pelos brasileiros, pois as duas primeiras partes, “Espadas” e “Copas”, serão apresentadas pelo diretor e seus doze atores no SESC Santo Amaro, a partir do dia 11 de Outubro. Mais uma vez, veremos um espetáculo com a marca da linguagem criada por Lepage, onde a representação dos atores é completada por recursos multimídias e, com certeza, nos perguntaremos onde começa e termina a relação teatro-cinema: o palco circular se desdobra em múltiplos espaços… Las Vegas, Bagdá, Argélia, França, Quebec.

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Mais uma vez, Lepage promete uma experiência inusitada aos seus espectadores. “Para esses espetáculos, adoto o formato de arena, com o público cercando o palco como um ringue de box. Além de permitir que o espectador se sinta dentro da cena, há uma verticalidade que, metaforicamente, pensemos no céu e no inferno. Sei que é um paradoxo, mas o caos é o início de tudo.”, provoca o encenador.

IMG_0245João Carlos Gonçalves (Joca)
Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.

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