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Ozualdo Candeias: O cinema marginal e a Boca do Lixo

Ozualdo Candeias foi um cineasta brasileiro nascido no ano de 1918 em Cajobi, município do estado de São Paulo, tendo falecido em 2007 na capital, aos 88 anos.

Candeias é considerado um dos precursores do cinema marginal brasileiro, movimento que teve seu nome baseado em seu longa-metragem “A Margem”, de 1967.

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Cartaz do filme “A Margem”, primeiro longa do diretor

Ozualdo era filho de agricultores e antes de se tornar cineasta chegou a trabalhar no campo, foi office-boy, taxista, lustrador de móveis, metalúrgico e caminhoneiro (SIM, CA-MI-NHO-NEI-RO! Enquanto aquela francesada toda ‘tava estudando na Sorbonne o Ozualdão tocava a boleia Brasil afora).

Em 1955 estreia no cinema com Tambaú – Cidade dos Milagres, curta-metragem que narra a história de pessoas desafortunadas/marginalizadas que pegam um trem para a cidade de Tambaú em busca da benção do milagreiro padre Donizetti. Esse trabalho já apresentava características marcantes de seu trabalho e que seriam abordadas durante toda a carreira do diretor: a crítica social através da ironia e, principalmente, a abordagem pela ótica dos desafortunados.

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Financiado pelo estado de São Paulo, Candeias dirigiu os curtas Polícia Feminina (1960) e Ensino Industrial (1962) e, no ano seguinte, trabalhou junto de José Mojica Marins (o Zé do Caixão) no roteiro de Meu Destino em Tuas Mãos. Ozualdo também foi assistente de direção de José Mojica no filme de estreia da personagem Zé do Caixão, À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964).

Seu primeiro longa-metragem foi o cultuado A Margem (1967), um filme que gerou espanto na crítica da época por ter retratado pela primeira vez a arraia-miúda no cinema, inaugurando uma espécie de naturalismo filmado. O filme é um marco do cinema nacional e é tido como a inauguração do movimento do cinema marginal brasileiro, formado por produções de baixo-orçamento em sua maioria produzidas na região da Boca do Lixo. Filmes como O Bandido da Luz Vermelha de Rogério Sganzerla e Matou a Família e foi ao Cinema de Julio Bressane são alguns dos clássicos  que marcam o movimento.

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Cartaz de “O Bandido da Luz Vermelha” (1968) de Rogério Sganzerla, um dos clássicos do cinema marginal

A Boca do Lixo

A nomeada Boca do Lixo é uma região do centro de São Paulo localizada no bairro da Luz, nos arredores da Rua do Triumpho (região que na década de 90 acabou se tornando a cracolândia).

Nas décadas de 1920 e 1930, empresas como a Paramount e a FOX se instalaram na região, atraindo, nas décadas seguintes, distribuidoras, fábricas de equipamentos e empresas de cinematografia para a região, o que a transformou em um reduto do cinema nacional independente.

Cineastas como Alfredo Sternheim e Cláudio Cunha, atuantes principalmente da década de 60 até o fim dos anos 80, tinham uma clara proposta autoral em seus filmes, criando dramas, comédias e até filmes de ação recheados de erotismo.

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O cineasta e ator Cláudio Cunha, durante filmagens na região da Boca

O termo “pornochanchada” atribuído às produções da Boca tinha uma raiz bastante pejorativa. Segundo os cineastas, qualquer filme que fizessem e que mostrasse um pedaço da coxa, um seio ou qualquer indício de erotismo já era chamado de “porno-drama”, “porno-comédia” ou qualquer derivado.

Ozualdo Candeias, em seu curta-metragem “Uma Rua Chamada Triumpho”, apresenta um pouco do ambiente e das personagens que frequentavam o reduto dessa vanguarda paulista do cinema. Abaixo, o filme completo.

Em 2011 o Canal Brasil fez uma série de 5 capítulos sobre a Boca. Com direção de Daniel Camargo, a série “Boca do Lixo – A Bollywood Brasileira” conta algumas das histórias da região, apresentando os principais cineastas, produtores e atores da Boca. (O documentário está disponível no Youtube e provavelmente será retirado do ar em breve por problemas com direitos autorais. Por enquanto é só clicar aqui pra ver.)

Sobre a Boca do Lixo e o Cinema Marginal, Ozualdo diz o seguinte:

“Ninguém se reuniu pra fazer um cinema, ninguém discutiu ‘vamos fazer isso’, não tinha nada de Cinema novo, não. Não era nada absolutamente nada. Cada um passou a fazer suas coisas à sua maneira, e isso deve ter durado muito pouco, porque depois cada um saiu fazendo a sua fita, atrás de público e tal da censura e tal.
Mas isso teria que acontecer e acontece em qualquer canto, (…) as pessoas se identificam por parentesco, por ideologias ou por um bocado de coisas. Então, um cara que pensava nisso ou naquilo por um tipo de cinema poderia se reunir, porque seria muito difícil, por exemplo, eu falar com Galante e com outros caras sobre cinema. Não era possível. Mas depois as coisas se equalizaram num determinado momento, lá pela segunda ou terceira fita.
Carlão já fez fita que não tinha ideologia nenhuma, Sganzerla também fez e daí por diante. Mas no começo houve uma certa identidade, isso que você chamou de identificação, creio que tenha havido. Agora, quem acabou chamando isso tudo de cinema marginal, se eu não me engano, foi Roberto Santos. Claro que ninguém prestou muita atenção. Ele pintava na Boca e dizia “você fez essa fita?” , ele gostava muito de A margem, _ “mas essa é uma fita maldita, é uma fita marginal, isso não vai dar nada não, mas é muito bonita”. Então ele disse “Ah, a fita de não sei quem também é uma fita maldita”. E esse negócio entre maldito e marginal acabou ficando marginal.”

Principais trabalhos

No total, Ozualdo dirigiu 10 longas-metragem, 2 médias e 11 curtas (clique aqui para ver a filmografia completa). Abaixo, algumas obras do diretor:

A Margem (1967)

Em uma favela às margens do rio Tietê, um louco busca incessantemente uma rosa, uma jovem recorre à prostituição como meio de sobrevivência, uma mulher circula vestida de noiva e um rapaz parece destoar daquilo tudo por usar um paletó que o sufoca incessantemente. Completamente ignorados, seus caminhos vão se entrelaçando e sentimentos vão surgindo em um ambiente que massacra qualquer tentativa de ligação entre os seres.

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Cena do filme “A Margem”

Meu Nome é Tonho (1969)

Num faroeste brasileiro, Tonho é um viajante que desconhece sua origem e carrega em sua memória muito pouco da infância a não ser o rapto que sofreu por um grupo de ciganos . Após abandonar o grupo, Antonio vive tranquilamente até que uma mulher cruza seu caminho, trazendo à tona suas memórias.

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Cartaz do filme “Meu Nome é Tonho” (1969)

A Herança (1971)

Adaptação de Hamlet para o centro-sul brasileiro do início do século XX, Omeleto é filho de senhores do sertão e vai para a capital com a finalidade de se tornar doutor. Seu pai acaba morrendo e quando ele volta para sua cidade, encontra sua mãe casada com seu tio. O falecido retorna do além para contar ao filho que foi assassinado e, assim, Omeleto jura vingança para que seu pai possa descansar em paz.

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Cartaz do filme “A Herança” (1971)

Zézero (1974)

Nesse média-metragem, um camponês tem uma visão em que uma fada o convence a ir para a cidade grande atrás de uma vida melhor. Chegando lá, o rapaz acaba preso em um trabalho sem futuro e gastando seu salário na loteria da cidade. Segundo descrição do próprio Ozualdo: “Zézero eu fiz com uma máquina nas costas e um jipe, que eu tinha um jipe nessa época. Esses filmes eu chamei de subterrâneos, nem mandei para a censura senão estaria fodido, talvez nem tivesse aqui. O Zézero tinha a seguinte motivação: quando criaram a loteca, achei que era uma safadeza, o cara ao invés de comer a marmita, o ovo, o feijão com arroz, vai jogar na loteca. Achei isso mau. O governo abusa da ignorância dos outros, cuja ignorância já é da responsabilidade dele, vai por aí afora. Acontece que o Estado abstratamente e concretamente é o responsável por essas coisas todas.”

Abaixo, o filme completo disponível no Youtube.

AOpção ou As Rosas da Estrada (1981)

O filme acompanha a história de mulheres de uma zona rural à beira da estrada e seu encantamento com o asfalto e os caminhões que as leva a tentarem a vida na cidade grande. Lá elas buscam um caminho menos sofrido que o da prostituição.

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Cartaz do filme “AOpção ou As Rosas da Estrada” (1981)

De caminhoneiro a diretor de cinema, Ozualdo foi um marco definitivo do cinema nacional por retratar uma esfera da sociedade que ainda não havia sido representada nas telonas e por ter realmente botado à prova que bastava ter uma ideia e uma câmera na mão pra se fazer cinema.

Recomendo fortemente essas 5 obras acima para que consigamos entender esse olhar incrível de Ozualdo. Uma ótica transgressora realizada a partir de uma iniciativa mais transgressora ainda. E, para finalizar, deixo aqui um depoimento do cineasta sobre a censura, as produções e a própria Boca do Lixo que, como disse um grande amigo, é um cenário fundamental para entendermos o cinema nacional de hoje.

Vitor Guima

Sai sempre de casa com uma palheta, uma câmera e um livro.

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