Com tantos lançamentos no circuito mainstream, é comum nos esquecermos de olhar para outros cinemas do mundo se não o norte americano (e vez ou outra, para o nacional). Vários desses filmes acabam por passar despercebido aos olhos do grande público, não fazendo jus algum à qualidade que entregam e enquanto alguns polos, como os países africanos, Irã, México e Coreia, entregam trabalhos cada vez mais primorosos, também é tempo de voltar os olhos para os nossos tão amados colonizadores. O cinema português, ao passo que é esquecido, também é provido de algumas particularidades: pouquíssimas produções são realizadas por ano no país, parte delas semelhantes às nossas “globochanchadas” e outra extremamente cultuada pelos amantes da sétima arte, como os filmes de Pedro Costa (Casa de Lava, Cavalo Dinheiro), Miguel Gomes (Tabu, As mil e uma noites) e João Pedro Rodrigues (O Fantasma, A última vez que vi Macau), este que recebeu o Leopardo de Ouro de melhor direção pelo seu último filme, O Ornitólogo.

Em Trás-os-Montes, no norte de Portugal, o ornitólogo Fernando (Paul Hamy) é arrastado pela correnteza do rio enquanto observava pássaros e após desmaiar, é encontrado por duas chinesas cristãs (e bastante devotas) que acreditavam estar trilhando o caminho de São Thiago da Compostela. Depois de ser amarrado e amaldiçoado pelas mulheres por não possuir fé, o caminho de Fernando se revelará mais complexo do que se imaginava. Entre símbolos religiosos, seres mitológicos, encontros inesperados e rituais violentos, a personalidade do protagonista mudará para sempre, não apenas pelos eventos incomuns que acontecem à ele, mas pela relação que seu “eu intrínseco” cria com a natureza. Por trás da aparente história simples de sobrevivência, a trama traça um paralelo (quase) perfeito com o mito religioso de Santo Antônio de Pádua (batizado de Fernando de Bulhões), figura muito importante para a cultura portuguesa.

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A narrativa onírica permite o diretor utilizar-se de drones e mini-câmeras para enriquecer os simbolismos do filme, dando a visão aos pássaros que Fernando observa, estes que o guiam e são capazes de enxergar o real intrínseco do protagonista. Segundo o próprio diretor, os takes que favorecem a magnitude e grandiosidade da natureza perante os humanos foram inspiradas nos grandes filmes de western, estes que colocam a ambientação árida e extensa quase como personagem na história. Aos olhos dos cristãos mais fervorosos, a distorção do mito de Santo Antônio pode parecer ímpia e/ou herege, mas é como João Pedro Rodrigues também descreve a festa do santo que ocorre em Lisboa, uma mistura entre o religioso e o profano. A imagem do santo também fora muito utilizada como sustentáculo para a ditadura, esta que se utilizava da imagem de Santo Antônio como exemplo de moralidade desejada pelos poderosos, destoando ainda mais da pessoa que o franciscano realmente foi.

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Outras realizações da tradição taumatúrgica de Santo Antônio também são retratadas de maneira subliminar: o encontro com o menino Jesus (que no filme é simbolizado por um pastor surdo-mudo homossexual, com quem o protagonista se relaciona) e o conflito e união do Homem com a natureza por meio das amazonas nuas simbolizam como a jornada de Fernando o purificará e o libertará de um modo nada-cristão.

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Crítico mirim, desenhista amador, escritor júnior e futuro diretor (se tudo der certo).