Já faz um mês inteiro, mas talvez ainda valha a pena evocar um fiasco publicitário no carnaval. Trata-se do famigerado “deixe o não em casa”. A campanha teve um efeito reverso de repúdio muito forte em mídias sociais. Não quero aqui entrar no mérito da campanha como um todo, do produto, da marca ou da campanha que tentou reparar o estrago.

anuncio-skol-carnaval-1423686791982_300x420

Atenho-me aqui ao ponto que soou ofensivo. No contexto de carnaval, a campanha poderia ser lida como a liberalidade característica do período: o carnaval é a festa da carne na qual, a princípio, são suspensas todas as renúncias cotidianas aos nossos impulsos.

Mas ela foi lida predominantemente por um viés machista: as mulheres deveriam ceder aos desejos de qualquer um, reduzindo-se a condição de objeto.
Talvez pudéssemos ler a mensagem também pensando que no carnaval, as pessoas, independente de gênero, devessem deixar em casa o ‘não’ para seus próprios desejos. Mas não foi esta a leitura.

Aí talvez tenha faltado à campanha uma sensibilidade à nossa época. Temos vivido mais fortemente nestes últimos anos um período no qual diversas modalidades de identidade têm se afirmado e reclamado seus direitos. Isto vale para gênero, opção política, religião, nação.

Que relação tem isto com a campanha? Direta. O ‘não’ é o limite que o eu impõe ao outro. Ao dizer ‘não’, eu me afirmo diferenciado, não fundido ao outro. Para quem esteja no trabalho de afirmação e consolidação de sua identidade, poder dizer ‘não’ é uma conquista preciosa. É difícil dizer não aos nossos pais, pessoas de quem gostamos, patrões, filhos. O meu ‘não’ frustra o outro é nos ameaça de perder seu amor.

Em contrapartida, quando as identidades se afirmam, elas ocupam espaço, impõem-se e, inevitavelmente, entram em choque com outras. Na simples medida em que somos ativos, avançamos sobre o espaço do outro. Nossos gestos podem ser violentos ao outro, mesmo que não tenha os tido uma intenção de agredir. As mídias sociais que o digam.

Penso que isto também nos ajude a entender maiores expressões de ódio com relação a diferenças.

Épocas de afirmação de identidades são também de atrito, choque, tensão.

Ter um lugar para si, respeitar o lugar do outro, manter o senso de humor e não cair no policiamento recíproco é um grande desafio contemporâneo.

desanti

Pedro de Santi

Psicanalista, doutor em psicologia clínica e mestre em filosofia. Professor e Líder da área de Comunicação e Artes da ESPM.

   

 

Os colunistas do Newronio são professores, alunos, profissionais do mercado ou qualquer um que tenha algo interessante para contar.