Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

A festa de premiação o Oscar 2015 foi uma das mais interessantes dos últimos tempos, não só pela qualidade dos filmes concorrentes, mas pelo seu instigante teor político e crítico.

Logo na abertura da cerimônia o apresentador, o ator Neil Patrick Harris (gay assumido), indiciou provocativamente seu discurso a favor das minorias: “Bem vindos à platéia mais branca, ops, mais brilhante de Hollywood.” O anfitrião talvez se referisse ao fato de que, pela primeira vez em quase 20 anos, não houve nenhum afro americano entre os 20 indicados nas quatro categorias de interpretação.

Por coincidência ou não, um dos momentos mais tocantes da premiação foi a apresentação da canção Glory (projeções de imagens da marcha histórica por direitos, com a presença de Martin Luther King, que originou o filme Selma, se encarregaram de ilustrar a força política da canção) que acabou ganhando o seu merecido Oscar, com direito a emocionado discurso de seus autores John Stephens e Lonnie Lynn, em defesa dos direitos individuais e da liberdade de expressão.

Outro momento memorável foi o discurso de Patrícia Arquette, vencedora do Oscar de atriz coadjuvante pelo filme Boyhood, que pedia por igualdade de direitos para as mulheres. A musa Meryl Streep não fez questão de esconder sua empolgação, como uma espécie de embaixatriz, aplaudiu com entusiasmo, levando a platéia do Dolby Theatre de Los Angeles ao delírio.

Mais emoção veio com a homenagem de Lady Gaga aos 50 anos de A Noviça Rebelde, sendo aplaudida de pé por sua sensível recriação de The Sound Of Music. A cantora deu um tapa na cara daqueles que a tomam como simples produto descartável da indústria cultural. A atriz Julie Andrews agradeceu emocionada a performance de Lady Gaga.

Meu contentamento foi completo com a premiação do filme Birdman (A Inesperada Virtude da Ignorância) de Alejandro González Iñarritu como melhor filme, diretor, fotografia e roteiro. Fico feliz, pois pelo segundo ano consecutivo, os mexicanos se sobressaíram na festa do Oscar, fato inédito que nos leva a pensar sobre o futuro das produções hollywoodianas. O discurso de Iñarritu, diretor que admiro pela constante pesquisa de linguagem, também teve o seu teor político, pedindo por mais respeito dos governantes ao sofrido povo mexicano.

Coluna Newronio 2015- 1 - Cartaz

O poema “Nosso Tempo” de Carlos Drummond de Andrade, que abre e fecha este texto, nunca esteve tão atual. Vamos torcer para que este balanço dos áridos tempos em que vivemos ganhe mais voz, rompendo com o silêncio que não liberta, mas cega e aprisiona:

É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.

É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.

 

IMG_0245

João Carlos Gonçalves (Joca)

Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.

 

Os colunistas do Newronio são professores, alunos, profissionais do mercado ou qualquer um que tenha algo interessante para contar.