Uma canção sobre uma flor emblemática? Uma canção sobre o Brasil? Uma canção sobre as desigualdades do mundo? Depois do sucesso da tournée internacional do show “Dois amigos, um século de música”, Caetano Veloso e Gilberto Gil, presenteiam o público Paulista com uma nova e enigmática canção em ritmo de bossa nova, “As Camélias do Quilombo do Leblon”:

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As camélias do Quilombo do Leblon
As camélias do Quilombo do Leblon
As camélias do Quilombo do Leblon
As camélias

As camélias do Quilombo do Leblon
As camélias do Quilombo do Leblon
As camélias do Quilombo do Leblon
Nas lapelas

Vimos as tristes colinas logo ao sul de Hebron
Rimos com as doces meninas sem sair do tom
O que fazer chegando aqui
As camélias do Quilombo do Leblon brandir

Somos a Guarda Negra da Redentora
Somos a Guarda Negra da Redentora
Somos a Guarda Negra da Redentora

As camélias da segunda abolição
As camélias da segunda abolição
As camélias da segunda abolição
As camélias

As camélias da segunda abolição
As camélias da segunda abolição
As camélias da segunda abolição
Cadê elas?

Somos assim, capoeiras das ruas do rio
Será sem fim o sofrer do povo do Brasil?
Nele, em mim, vive o refrão
As camélias da segunda abolição virão

O próprio projeto estético de Gilberto Gil e Caetano Veloso, onde obras e criadores se confundem, os transforma em artistas singulares, requerendo, na percepção de suas obras, a alternância dos lugares de produtor e de receptor. Percebe-se o último criando e recriando os plurais sentidos expostos em suas canções-poemas.

Assim, a aparente simplicidade da nova canção de Caetano e Gil, remete a um episódio pouco divulgado da história nacional que serve de inspiração para o título e o refrão: uma chácara na região onde hoje é o bairro carioca do Leblon, que abrigava escravos fugitivos, com apoio do movimento abolicionista. No local, cultivava-se as camélias, símbolo da luta contra a escravidão. De modo inteligente e perspicaz, os artistas tecem uma instigante analogia com Israel, ao citar as colinas de Hebron (note-se a sacada homófona com o bairro de Leblon no Rio de Janeiro), na região da Judeia. Bom lembrar que Gil e Caetano apresentaram o novo show para os israelenses, sob o protesto de ativistas pró-Palestina, incluindo o ex-Pink Floyd Roger Waters.

À polémica gerada em torno da sua não adesão ao boicote de outros músicos para atuar em Israel, nossos gênios criadores responderam uma linda canção bandeira-branca, sugerindo que a poesia e a música são uma potente arma contra os tempos pouco democráticos que vivemos.

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A percepção e os olhares de Gil e Caetano clarificam o presente, ordenam o passado e miram o futuro. Acabam por vislumbrar e fundar o próprio poético, transferindo para suas criações uma experiência vista/vivida, transformando-as em experiência a ser revivida/revista pelos seus receptores. Um ato de generosidade e amor.

Quanto ao show histórico, não há palavras para descrever a emoção sentida: para guardar na memória e no coração. O melhor lugar do mundo é aqui e agora.

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João Carlos Gonçalves (Joca)

Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.

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