Neste texto, dou continuidade a um outro publicado na semana passada. Faço aqui uma caricatura de diálogo entre pais e filhos em época de vestibular. Trata-se do que segue à declaração mútua sobre a busca do melhor para o futuro do filho.

O texto da semana passada se chamou “Não foi isso que sonhei para você”, e tratava da perspectiva dos pais, ao se darem conta de que seus filhos se afirmam como sujeitos saindo do campo sonhados por eles. O filho como um projeto narcísico de seguimento daquilo que gostamos em nós mas, sobretudo, como esperança de reparação de nossas feridas, perdas e faltas que sofremos.

Nesta semana, enfatizo a perspectiva do filho. Durante uma discussão em que o pai apresenta suas expectativas e as fundamenta um sua maior experiência de vida, ou mais, em sua condição de provedor, e que ainda pode ser acrescida da chantagem emocional: “depois de tudo o que fiz por você…”

Em meio ao tiroteio de demanda e cobrança, o filho pode, para se esquivar, gritar o enunciado que nomeia este texto: “eu não pedi para nascer!”.

Este enunciado, resposta simétrica ao do pai, é muito expressivo em sua dramaticidade. Ele devolve ao pai seu projeto e enuncia um fato.

O filho está expondo o pai em sua condição desejante: o projeto é dele, o desejo é dele. Mesmo que com o argumento de que aquilo seria melhor para o filho, fica exposta a dimensão narcísica, que ignora a voz e desejo que se formula pelo filho, desautorizado como imaturo. Como eu disse no texto anterior: faltou combinar com o adversário. Reconhecer o filho como alguém capaz de pensar e decidir; e que não é um apêndice dos pais.

A situação é de fato tensa: cobra-se dos pais prover financeiramente e afetivamente, enquanto não têm mais controle e cada vez menos direito de acesso a um filho que se torna maior de idade.

E o “não pedi par nascer” enuncia uma verdade fundamental. Quando nos demos conta de nós, já estávamos vivos, em meio a uma vida familiar e social que certamente não escolhemos. Somos absolutamente passivos no processo: não pedimos para nascer, não escolhemos nossos pais (ou família, como um todo), nossa situação geográfica, nossos genes, nossa época.
Não somos responsáveis por estas condições, na medida em que não fomos os sujeitos delas; sujeitos no sentido de causa anterior.

Por outro lado, devemos a vida aos nossos pais e o processo de se tornar sujeito passa justamente por nos apropriarmos daquelas condições que nos couberam, tornando-as vias que possamos chamar de nossas. Isto pode nos fazer sentir muita culpa e ressentimento. É pesado afirmar o próprio desejo e decepcionar as expectativas dos pais.

Posso passar a vida reclamando e dizendo algo como: “é claro que não sou feliz: com essa família, nesse país, nesta época…”. Quem assim se coloca, mantem-se em posição de vítima oprimida e ressentida no mundo. De certa forma, desde esta posição, não é possível mesmo a alguém se tornar sujeito de sua vida. Para a psicanálise, um sujeito não nasce sujeito, mas se torna um. E o processo para que isto se dê passa por sair da posição de desamparo, deixar de “querer ser outra pessoa”, parar de negar suas condições de origem e transfigura-las em seus recursos de vida; sua comprometimento com seu tempo época, sociedade; sua felicidade possível. Só desde esta apropriação das próprias condições, possibilidades de transformação podem ser consideradas.

Conto aos alunos uma situação pessoal, com exemplo deste drama. No sonho de meu pai, eu deveria ser médico. Ele foi engenheiro e advogado (mandou muito bem) e esperava que eu apenas complementasse as carreiras clássicas. Aos 17, eu era músico, tocava piano num trio. Vagamente, considerava seguir a carreira.

Na horta do vestibular, com a delicadeza que o caracterizava, meu pai foi manifestando sua expectativa com relação à medicina. Uma longa negociação se seguiu. Eu propus: “pode ser médico psiquiatra, ele trata de loucura e loucura é um assunto muito legal!”. Meu pai concordou. Na hora de me inscrever para os vestibulares, eu deslizei e disse: “Ah, lidar com loucura sem remédios é mais legal ainda!”. Quando meu pai piscou, eu prestei psicologia. Decepção velada, mas decepção, como se eu estivesse desperdiçando um potencial.
Outros 17 anos adiante, estava eu fazendo a defesa de meu doutorado em psicologia clínica, com meu pai presente, todo orgulhoso no auditório. Em meio à arguição, tive um insight. Nada, nada, eu estava oferecendo ao meu pai naquele dia algo com ele sonhou: um filho doutor. Era doutor de doutorado, mas foi o que deu.

De certa forma, assim muitos de nós administram a tensão entre os dois enunciados. Entre o “não foi isso que sonhei para você” e o “não pedi para nascer” estão as inibições, culpas e impossibilidades de responder quer a demanda de um, quer a do outro. Mas também podem estar as soluções de compromisso, negociações que levam nossas vidas adiante em suas realizações. Isto, até termos nossos filhos, sonharmos com eles e repassarmos a conta.

desanti

Pedro de Santi

Psicanalista, doutor em psicologia clínica e mestre em filosofia. Professor e Líder da área de Comunicação e Artes da ESPM.

   

 

 

Os colunistas do Newronio são professores, alunos, profissionais do mercado ou qualquer um que tenha algo interessante para contar.