Bom, continuando de onde o último texto parou: a mesa com Vladímir Sorókin, primeiro convidado russo da FLIP e segundo escritor russo a ser convidado para um evento no Brasil, e Elif Batuman, americana de ascendência turca que, desencantada com a cultura da alegria frívola americana, foi procurar na potência oposta a profundidade da alma que achava mais próxima de si.

A mesa já abre com Sorókin emocionando a plateia, afirmando que a literatura é como um tiro silencioso: você não sabe de onde vem, quando vem e nem percebe quando está para ser atingido; mas quando é atingido você muda; o mundo muda ao seu redor, você passa a ver as coisas de forma diferente e nunca mais voltará a ser o mesmo.

A grande surpresa da mesa foi a afirmação de Sorókin de que o texto de Dostoiévski é melhorado durante a tradução e que ele não é muito apreciado por escritores de língua russa. O motivo? Para cumprir os duros prazos a ele impostos (pois precisava alimentar sua família), sua escrita é muito apressada e, por vezes, o autor não relia suas passagens. Nas palavras do convidado “Dostoévski é uma carnificina literária e de estilo, que transforma o leitor em verdadeira carne moída” .

Quando questionado sobre a ausência de humor na literatura russa, Sorókin reconhece as diferenças do que é considerado humor em diferentes países e dá um alerta sobre particularidades dele na Rússia: “Faz-se piada como se esta fosse a última piada da vida”. O riso parece vir acompanhado quase sempre de certo gosto amargo nessas terras gélidas.

Fechando a mesa de forma estarrecedora, Vladímir Sorókin, intelectual abertamente contrário ao governo Putin, expõe sua opinião de a literatura não deve ser pautada pela opinião política do autor, encerrando a bela mesa com outra máxima: “Putin vem e vai, mas o romance fica para sempre”.

Novamente nessa quinta-feira que não acabava nunca (ufa!), assistimos a mesa da neozelandeza Catton e do suíço Dicker, autores de “Os Luminares” e “A verdade sobre o caso Harry Qubert”, respectivamente. Ambos possuem 3 coisas em comum: são jovens, seus romances usam e abusam da metalinguagem e da forma de se contar uma história e escreveram muitas, muitas páginas. Luminares tem quase 1000 em que personagens arquetípicos de signos do zodíaco enfrentam todas as doze posições astrológicas ao longo de um ano inteiro. Pensando assim, além de parecer um sistema incrível, todas essas páginas parecem até pouco.

Mas espere! Nosa mesa foi interrompida pela marginal (nem tanto, estava na programação principal) conversa entre Charles Peixoto e Adriana Calcanhotto sobre poesia, da marginal e irreverente até os, ora sistemáticos, ora relaxados, hai kais. Curioso pensar que uma forma tão contemplativa, que procura acabar com toda o ego, como o hai kai tenha feito tanto sucesso em um país como o Brasil, tão falante e cordial, como diria Buarque de Holanda. Claro que muitas variações e “relaxamentos” foram moldando e diversificando a produção no país, que teve de Leminskes a Millôres. Leminski, inclusive, poeta marginal e que espanta seus antigos colegas do “meio” com o tremendo sucesso que seus livros têm feito hoje em dia. Suspeitas de algum conluio no além-túmulo não faltam.

No começo da noite, ponto para o Brasil! Silviano Santiago e Mathieu Lindon falam da biografia que escreveram sobre grandes amigos. Com muita expectativa acerca de suas falas, uma vez que escreveu sobre ninguém menos do que o mais famoso filósofo do século XX, Foucault, Lindon parece não convencer que realmente tenha aproveitado tudo que o amigo tinha para oferecer, for a o libertino apartamento e o LSD. Já Santiago ganha a todos com suas opiniões acerca da diferença de homens moldados pela necessidade e pelo desejo; do papel transgressor das artes na aceitação da subjetividade de minorias; sobre o amor, seja ele sexual ou não; e até sobre a velhice, seja ela sexual ou não.

A noite termina com o que, sem saber o que era, se transforma em um Sarau Erótico (ou pornográfico, depende da interpretação ou não faz a menor diferença) na Casa Libre. Os convidados são Clarah Averbruck, blogueira e escritora que recentemente obteve sucesso estrondoso para o crowdfunding de seu novo livro, e a Cozinha Experimental, editora artesanal (sim, fazem TUDO em seus livros, tirando a impressão do miolo) que, em resposta ao interesse de seus membros por poesia pornográfica, criaram um braço denominado Cuzinho Experimental, o simpático (*).

Quem pensa que só gente xula escreve putaria se engana pois figuraram entre autores lidos alguns desconhecidos do porte de Manuel Bandeira, Oswald de Andrade e até mesmo Drummont. A grande questão posta foi a razão pela qual a ótima de uma mulher sexualmente independente causa tanta aversão e, como conta Clarah, até mesmo ataques e ofensas morais. Existe motivo pelo qual mulher não possa falar de sexo? A fulminante e definidora participação de Mariliza, uma professora e doutora que estuda, justamente,  feminismo e educação sexual, afirma que isso é culpa de nosso sistema educacional. As questões são omitidas e até mesmo abominadas. Ainda há um longo caminho a se percorrer para que meninos e meninas se sintam igualmente seguros com relação a sua sexualidade, da qual pouco ou nada sabem e a internet não contribui lá de maneira positiva.

Depois de um dia tão cheio só resta a longa caminhada noturna de volta à pousada. São 2h da manhã e já não há quase ninguém na rua. Me lembro de que o caminho de volta passa por muito mato, nenhuma casa e até mesmo uma ponte tão estreita que não se consegue colocar os dois pés lado a lado. Ah, e seu parapeito deveria ser renomeado parajoelho. Me lembro que as histórias mais interessantes (e que ninguém jamais acredita) acontecem justamente nessas condições e sigo meu caminho.

Minha barba. Minha vida.