Depois de uma noite de sono pontuada por ataques de mosquito e acentuada pelos uivos caninos, enfim começa um novo dia. O café da manhã é servido cedo, então não há muitos minutos para se rolar na cama, talvez uma única função soneca, apenas.

Durante o café da manhã percebi que não havia terminado o livro que trouxe. Uma pena, sua leitura vai ser esquecida diante de tantas novidades que já começam a despontar no horizonte do interesse. Mas não tem problema. Mais espaço em branco na cabeça para absorver tudo que deve estar por vir. Se hoje pôde servir de parâmetro, tudo virá. E como virá.

A Praia do Jabaquara aqui em Paraty parece uma miragem à primeira vista: céu e mar se fundem no horizonte, sendo divisíveis apenas pelas ilhas, manchas pretas irregulares em cima e totalmente planas embaixo, onde pessoas parecem quase andar sobre a água até se perder a vista. Quando se anda pela água também, percebe-se a ilusão: a água é rasa e assim fica até bem longe da areia. Perfeito para uma caminhada.

A manhã continua com uma visita à Casa de Cultura de Paraty, tomada pelas mostras de e para o homenageado desse ano, Millôr Fernandes. No primeiro andar várias caricaturas e charges de grandes admiradores (entre eles Reinaldo, Hubert e Jaguar, que participam da mesa de abertura da Festa). No segundo andar está a mostra “Millôr, 90 anos de nós mesmos”, principal homenagem ao autor, que conta com a linha cronológica de sua carreira, com direito à rabiscos, publicações, canções e narrações do próprio Millôr sobre os mais diversos momentos de sua vida.

Por lá também é distribuído o Millôr Daily, publicação diária durante o evento em que “Millôr comenta a programação”. Uma ideia bastante interessante, uma vez que o próprio se considerava não desenhista ou cartunista, mas antes jornalista. A ironia, os jogos de palavras e algumas de suas obras mais famosas não deixam de figurar na publicação. Fisa Coina, se uma pequena troca de sílabas comum nas “brincadeiras” do mestre, me for permitida.

A grande descoberta do dia fica por conta da Livraria das Marés, um espaço super novo (não tem mais de 4 meses) que pode ser uma livraria com café no fundo ou um café com livraria na frente. Posso dizer que é um lugar lindo e aconchegante, convida à leitura e a um café (ou melhor ainda: os dois). Uma pena que seja perigoso. Perigoso pelos livros de arte fantásticos ou pelas delicadas sobremesas. Realmente, um perigo.

Ainda com o sol a raiar, conhecemos a Casa Folha, onde todos os dias estarão edições do jornal bem como da revista Serafina para retirada. Paredes forradas por primeiras páginas dos grandes momentos históricos (eu nunca havia visto a manchete “Queda do Muro marca Fim da União Soviética”), diversas coleções Folha e livros de sua editora, a Três Estrelas, por lá dão as caras. Completando tudo isso, um balcão com café Tres sempre sendo servido. Um lugar difícil de ir embora e que promete abrigar debates e palestrar com diversos colunistas do jornal.

Outro lugar difícil de ir embora é o gigantesco estande da Livraria da Travessa, convidada deste ano da Festa para ocupar lugar de honra próximo à Tenda dos Artistas. É interessante notar que a livraria carioca possui títulos e edições diferentes das livrarias paulistas, como a Cultura e a da Vila. O grande destaque fica por conta da sessão de livros portugueses, pouco comuns por SP, que atiçam a curiosidade, com sua variedade, ao mesmo tempo que afastam, com seu preço um tanto elevado.

O pôr-do-sol em frente à futura sede do Sesc Paraty foi marcado pela encenação de “Sonho de uma Noite de Verão”, do projeto Shakespeare na Praça, que busca resgatar o tom informal da dramaturgia do autor, tornada engessada e difícil pelos longos anos de evolução da linguagem que nos separam dela. O que não parece ter mudado nesses anos todos é o amor, tema principal dessa peça cuja apresentação cheia de improvisos e interação com a plateia da Cia. Farsacena de Teatro de Rua arranca boas gargalhadas.

Depois de uma pequena confusão com assentos nos telões, começa a Mesa de Abertura. Mauro Munhoz, da Casa Azul, fala brevemente sobre o que é a FLIP e apresenta o curador deste ano, Paulo Wernek, de sua escolha pessoal. Wernek é também sucinto, agradecendo a honra mas também a responsabilidade de ocupar tal posição e introduzindo o grande expositor da noite, Agnaldo Farias.

Em um delicioso discurso praticamente interrompido pela limitação de tempo, Farias apresenta Millôr. Millôr jornalista, Millôr desenhista, Millôr erudito, Millôr Intelectual e Millôr pensador. Ficamos sabendo as influências da arte moderna no trabalho do autor, com traços das linhas de Picasso, das cores de Miró e das composições de De Koonigs. Curioso notar como todas essas influências que eram sempre vistas em galerias de arte (e, por consequência, possuem aquela “aura”de obra de arte, como pensava Walter Benjamin) passam pela maestria de Millôr para figurar em um dos locais menos glamourosos que conhecemos: nossa própria casa, por meio das páginas de jornais e revistas.

Um ponto bastante defendido por Farias é a incrível maneira com que Millôr lida com o Texto-Imagem. Não há dissociação em suas obras, não é um desenho com texto e muito menos um texto ilustrado. É uma coisa só e seu sentido depende de tudo isso. Essa dualidade é bastante presente em sua visão de mundo, que muito comumente buscava sintetizar visões de mundo por vezes antagônicas, relativizadas sob a égide da ironia.

Este é Millôr e depois das explicações e pensamentos de Agnaldo Farias, não há como não se apaixonar por seu jornalismo. Millôr é versátil e dinâmico, transitando entre tantas maneiras de criar diferentes, da charge à dramaturgia, que talvez seja um dos autores que mais representam os tempos atuais, em que divisões e rótulos são tão embaçados e nossa vida é regida cada vez menos por instituições e áreas de conhecimento absolutamente rígidas e isoladas.

O dia termina com Gal, encantando a todos, embalando a todos. Os anos parecem ter feito pouco para sua voz, que ecoou por todos os cantos de Paraty com toda sua potência e emoção. Não houve sinos marcado a hora que a escondessem, não houve garoa que a espantasse. Não houve indivíduo cujo corpo não respondeu, mesmo que por alguns compassos apenas, a uma de suas canções mais dançantes. Não houve também indivíduo cujo coração não tenha, ao menos um tantinho, se apertado com alguma de suas canções de amor.

Minha barba. Minha vida.