“gardênias e hortências
não façam nada
que me lembre
que a este mundo eu pertença

deixem-me pensar
que tudo não passa
de uma terrível coincidência”

(Paulo Leminski)

Tons de cinza invadem a Arte e a Cultura. Muitos tentam, sem muito sucesso, colorir esta preocupante “paisagem” em preto e branco.

Andando pela Avenida Paulista resolvo dar uma passada na Livraria Cultura do Conjunto Nacional para conferir os últimos lançamentos culturais (Literatura, Cinema e Música) pelos quais tenho fetiche de consumo. Confesso que sou um consumidor compulsivo de Livros, DVDs, BluRays e CDs. Qual foi o meu espanto ao me deparar, logo na entrada da livraria, com uma banca totalmente destinada aos livros para colorir e produtos afins, como caixas de lápis de cor e canetas hidrográficas.

Já sabia do sucesso destes “livros”, mas confesso que fiquei assustado com a hiper-valorização de tal produto num dos templos de consumo de produtos culturais de São Paulo; tive uma estranha sensação de deslocamento, um sentimento de não pertencimento ao atual universo do mercado que vê a cultura como mero objeto de entretenimento. Me senti um pouco ultrapassado, saudosista (para não dizer velho) pois minha formação intelectual vem da paixão pela palavra escrita, pela poesia, pela literatura feita com pedaços de um cotidiano que gera reflexão, pensamento e, consequentemente, alarga repertório e visão de mundo. Alta literatura? Não necessariamente.

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Dando uma “googada” na internet soube que neste mês, os livros para colorir ultrapassaram os de auto-ajuda, conquistando a liderança na lista de obras mais vendidas no país (seus concorrentes são “Nada a Perder 3”, de Edir Macedo e “Philia”, do Padre Marcelo). Falando em números: até a primeira quinzena de abril já haviam sido vendidos 65 mil exemplares do livro “Floresta Encantada”, lançado no início do mês. Desde dezembro, 150 mil cópias do seu irmão gêmeo “Jardim Secreto” foram adquiridos pelos brasileiros. Quem comemora é a ilustradora escocesa Johanna Bashford, autora dos referidos “livros” que vêm fazendo história nas livrarias do Brasil e do mundo (os dois títulos atingem um total de 1,5 milhão de exemplares vendidos ao redor do globo).

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Há quem diga que esses livros incentivam as pessoas a terem um momento somente seu, desligando o pensamento das preocupações cotidianas. Ajudam a distrair e fazem com que seus usuários viajem em cada detalhe da figura a ser pintada, o que elimiraria o estresse do dia a dia. Eles também representariam uma excelente opção de relaxamento e, principalmente, de concentração. Justificativas aceitas, mas meu senso crítico de professor de Teorias da Comunicação me aponta para um modismo meio sem sentido, me sugerindo um caça níqueis para consumidores menos críticos. Prova é a proliferação de títulos que invadem o mercado como: “Jardim Encantado” de Sophie Leblanc; “Mindfulness” de Emma Farrows; “Mandalas para Relaxar – pintando com Gandí”; “Mandalas para Relaxar – pintando com Van Gogh”; “The Creative Therapy Colouring Book” de Richard Merritt, Hannah Davies & Cindy Wilde; “Arte-Terapia Anti-Stress – Jardins – 100 imagens para colorir” de Ana Bjezancevic; “Desenhos de Andy Warhol” Editora Dba; “Mandalas Mágicas” de Nina Corbi; “Fantasia Celta” de Michel Solliec; “Um montão de coisas para achar e colorir” de Fiona Watt e até o “Pequeno Príncipe para Colorir” (sem mencionar o surgimento de títulos eróticos, resvalando no pornográfico, que o meu bom senso me impede de reproduzir aqui).

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Os memes são de criação do aluno Pv Feoli.

Estava me achando com uma postura muito apocalíptica e pouco integrada em termos de Comunicação de Massa (meus alunos sabem do que estou falando), quando li o texto do jornalista Sérgio Augusto publicado no jornal O Estado de São Paulo, na mesma semana de minhas inquietações. A crítica, recheada de ironia, não deixa dúvida logo no título “Barbies com Lombadas”. Apesar do humor corrosivo, achei a resenha muito pertinente por abordar, implicitamente, vários conceitos teóricos dos Estudos Culturais na comunicação social. O parágrafo porrada do jornalista: “A bem dizer, esses volumes para colorir são como bonecas em forma de brochura, Barbies com lombadas, uma distração inequivocamente regressiva. Guardados numa estante formam o que podemos chamar de barblioteca. (…) Jardim Secreto e outros álbuns da escocesa Johanna Basford (uma espécie de Romero Britto do nanquim) é um santo remédio para combater o estresse: distrai e relaxa, troca adrenalina por endomorfina. Se de fato terapêuticos, os livros para colorir não precisam de outra serventia e talvez devessem ser vendidos também em farmácias. Não têm efeitos colaterais, são inofensivos, como convém a todo e qualquer passatempo de criança.”

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Nem preciso dizer o porquê de ter adorado o referido texto; meus queridos leitores, alunos e amigos, já são meus cúmplices de campo repertorial. Acabo de ver no caderno Ilustrada da Folha de São Paulo, uma propaganda de meia página anunciando novos títulos e a grande novidade: livros para colorir com imagens de gatos, vulgarmente denominados de Gatoterapia.

Infelizmente não estamos diante de uma terrível coincidência, mas de uma terrível e sofrível realidade.

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João Carlos Gonçalves (Joca)

Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.

Os colunistas do Newronio são professores, alunos, profissionais do mercado ou qualquer um que tenha algo interessante para contar.