Como pesquisador e estudioso da Semiótica, uma Teoria Sígnica do Conhecimento, sempre fui apaixonado pela fascinante relação entre “Representação” e “Realidade”. Charles Sanders Peirce, o pai da Teoria Geral dos Signos, em 1865, caracteriza a Semiótica, em sua primeira fase, como “a teoria geral das representações”. Já na fase posterior, Peirce aponta que a representação “é o processo de apresentação de um objeto a um intérprete de um signo ou a relação entre o signo e o objeto”. Assim, ao expor o conceito de Representação, o filósofo já informa que representar significa uma substituição: “estar em lugar de, isto é, estar numa tal relação com um outro que, para certos propósitos, é compreendido por alguma mente como se fosse a outra coisa”.

Toda esta introdução, aparentemente teórica, tem por função expor uma inquietação que vem me acompanhando nos últimos meses: a dificuldade que temos em distinguir e analisar as representações que habitam nosso cotidiano. Os meus alunos de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada já sabem de minha identificação afetiva com o pintor surrealista René Magritte que, a meu ver, é o mais perfeito criador a questionar o binômio Real x Representação em suas obras: os quadros-janelas criados pelo pintor belga, convidam seus observadores a refletir sobre este fascinante assunto.

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Pois bem, minha inquietação ganhou intensidade ao ler uma crítica na Folha de São Paulo, onde o jornalista comentava que o novo filme de Jean-Pierre Jeunet “Uma Viagem Extraordinária”, abusava do preciosismo visual e do sentimentalismo para comover o espectador; indiciava, também, que o referido filme, bem como o já clássico “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” do mesmo diretor, era “sabotado pelo excesso de fofura”.

Oras, a Arte sempre foi e sempre será o lugar da representação fabular. Jean-Pierre Jeunet, Tim Burton, Spike Jonze e Wes Anderson (para não estendermos por demais a nossa lista) sabem disso e nos oferecem obras encantadoras com camadas de pintura autoral: personagem fora do eixo tradicional, fotografia requintada, movimentos de câmera e edição engenhosos, narrativas oníricas (quase surreais), trilha sonora que embala com perfeição os fatos narrados… ou seja, são diretores fofos que criaram filmes fofos e que cumprem com maestria a função de nos transportar para o sublime, para o campo da poesia; missão por demais bem vinda nestes tempos tão áridos e agressivos em que vivemos.

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Creio que o crítico da “Falha de São Paulo” confunde Poesia com “Fofura”.

A função de um bom crítico de Cinema não é ensinar-nos o que é cinema, mas instigar-nos a estudá-lo; não é ficar no juízo de valor pessoalizado, mas despertar no seu leitor a curiosidade sobre a obra analisada (criticada). A verdadeira crítica orienta. Como sugere Caetano Veloso no livro “O Mundo Não é Chato”, procurar entender a arte cinematográfica não é um mero passatempo esnobe, mas uma necessidade cultural do homem moderno. Porque das artes, a mais atual é o cinema. É a que mais exprime o espírito inquieto do momento; é a arte do movimento, é a arte que apresenta uma importância social: “O homem precisa de arte porque além de nervos e músculos, tem uma coisa que se chama alma. E a arte é a maior carícia para a alma. Para quem pratica é o prazer de externar seus sentimentos. Para quem a contempla é o prazer de ver o belo ou de reconhecer, no sentimento do artista, seu sentimento.”

Como Amélie Poulain, precisamos reaprender a olhar para as nuvens tempestuosas que habitam o céu e transformá-las, com o nosso olhar desarmado, em coelhos e ursos, fofos em suas (nossas) fragilidades e poesia. Evasão? Escapismo? Fuga da Realidade? Não, apenas uma representação artística que busca nos alimentar de humanidade.

Conclusão: vamos parar de sabotar a poesia das artes? O poeta Ferreira Gullar nos ensina: “Arte é uma coisa imprevisível, é descoberta, é uma invenção da vida. E quem diz que fazer poesia é um sofrimento está mentindo: é bom, mesmo quando se escreve sobre uma coisa sofrida. A poesia transfigura as coisas, mesmo quando você está no abismo. A arte existe porque a vida não basta”.

 

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João Carlos Gonçalves (Joca)

Doutor em Linguagem e Educação pela USP; Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de Fundamentos da Comunicação e Semiótica Aplicada na ESPM.

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